DANIEL FALCÃO
Com uma época completamente demolidora, o confrade de Braga fez uma demonstração cabal da sua enorme qualidade, levando-nos a considerá-lo o melhor decifrador da actualidade e, seguramente, o melhor de todos os que conhecemos nos mais de 40 anos que levamos de Policiário!
A sua capacidade de interpretar um texto, desmontando-o e voltando a montá-lo, encaixando cada peça no exacto local onde faz falta, é notável e ficou bem patente ao longo de toda esta época.
Campeão Nacional de decifração, vencedor da Taça de Portugal, Policiarista do Ano, N.º 1 do Ranking Público-Policiário, 1.º classificado das Melhores, muito pouco ficou por conquistar, apenas a originalidade e a produção, de que terá abdicado.
Campeão Total, é o que nos apetece chamar-lhe neste momento de consagração.
E para que não haja qualquer dúvida sobre a sua prestação, vamos deixar aqui a solução que apresentou ao desafio de Mário Campino, ele que foi o grande campeão nacional de produção. Uma solução bem à medida da produção:
CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2016
PROVA Nº 10 (PARTE I)
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COMO NA LENDA DE
PILARZITO
Original de MÁRIO CAMPINO
Bisarma (subst. fem.) – Pessoa ou coisa de tamanho
descomunal.
1. – O AVÔ PALALÓ DE REGRESSO A CASA
Estava-se
nos alvores da Primavera, corria o mês de Março, tendo já ficado para trás as
inevitáveis cheias invernis, em que o Tejo transborda afogando as veigas
ribeirinhas.
Mas,
quando o Avô Palaló se preparava para abandonar a Herdade das Ferrarias, tendo
como destino a sua morada em Almeirim, foi surpreendido por uma inesperada
borrasca que o forçou a passar mais uma noite na herdade. Nada que o
preocupasse, pois aproveitou a oportunidade para cear com o Charneco e o Chico
Figueiredo e dormir no casal.
Embora
a noite tenha sido alagada pela chuva birrenta de lavar a terra e entranhar, o
dia seguinte nasceu com o céu limpo e azul. Por isso, encetou, sem pressa, o
seu regresso a casa.
Pelo
caminho, observou que o Tejo, mais uma vez, retomara o seu leito, abandonando
as veigas ribeirinhas para onde se estendera durante a noite. As terras
alagadiças enxugavam naquela manhã primaveril.
Cavalo
e cavaleiro, inseparáveis companheiros em muitas jornadas matinais, percorrem
calmamente o caminho de regresso a casa, tantas vezes calcorreado. Passo a
passo, sem comando, lá vai o cavalo.
Ao
passarem pelo bebedoiro de pedra, na berma da estrada, observam a água límpida
a verter pela encosta por um cano improvisado, acabando por cair numa pia e, a
partir desta, prosseguir o seu caminho na direção da valeta.
Pouco
à frente, já se avizinha a subida breve que os espera, cheia de curvas e
ladeada por eucaliptos. Ultrapassada esta subida, eis que aparece alguma
planura. O cavalo não resiste e dá um ligeiro trote, enquanto se aproximam das
ruínas do Convento da Serra.
É
neste preciso momento que o Avô Palaló recorda as circunstâncias históricas que
deram origem à conhecida Lenda de Pilarzito, corria o século XVI e reinava
El-Rei D. Manuel I, o Venturoso, décimo quarto rei de Portugal.
Entregue
a estas memórias, o Avô Palaló aproxima-se da Casa da Pata. Em vez da habitual
serenidade, repara num pequeno grupo de pessoas que rodeia o velho
guarda-florestal.
Intrigado,
decide fazer um curto desvio, para se inteirar sobre o que se passava. Saiu da
estrada, abandonou a sua montada e juntou-se ao grupo.
2. – A LENDA DE PILARZITO
Maria
do Pilar era uma bela e doce donzela, ainda nos seus quinze anos, filha do
Garcia, proprietário da Taverna com o seu nome, que encantava os clientes com
exuberantes danças castelhanas.
A
sua vida seguia tranquila, e talvez tivesse uma vida longa, não tivesse
deparado, entre os clientes da taverna, com o herdeiro ao trono de Portugal, o
também jovem e príncipe D. João.
A
perceção dos dois amigos do príncipe, o D’ Ataíde e o Luís Silveira, não estava
errada. A única forma de superar a tristeza que afligia o príncipe, depois do
seu pai El-Rei D. Manuel ter casado em terceiras núpcias com a sua prometida e
já amada Leonor, só poderia passar com uma nova paixão.
Aquela
noite em que o príncipe D. João e Pilarzita, como passou a ser amorosamente
designada, cruzaram os seus olhos pela primeira vez, marcaria o início de um
novo amor, apenas interrompido devido à intriga própria da época.
O príncipe
D. João, depois daquela noite, não mais quis partilhar o encanto da sua
Pilarzita. Para garantir que assim era, imediatamente providenciou, com a ajuda
dos dois leais amigos, a recuperação de uma pequena casa à beira de um riacho,
entre Almeirim e o Convento da Serra.
Foram
contratados os melhores artífices da região, para embelezar e mobilar
luxuosamente a casa onde Pilarzita passaria a residir na companhia de uma velha
ama. Casa esta profusamente partilhada pelos dois jovens apaixonados.
O
idílio teria sido, pelo menos, mais duradouro, não fora as intrigas do
prior-mor do Convento da Serra, Frei Tomás de Santa Fé, confessor do príncipe,
que teria feito chegar aos ouvidos de El-Rei o alegado sacrilégio.
Sobre
o que aconteceu depois, são escassos os registos: Pilarzita apareceu afogada no
riacho, da ama nunca mais se soube e até Frei Tomás teria sido mortalmente
apunhalado quando seguia em direção a Santarém.
Os
acontecimentos mantiveram-se e ainda se mantêm nebulosos.
O
que se sabe é que o príncipe D. João, poucos anos depois foi entronizado como
El-Rei D. João III, o Piedoso. Já a casa, cenário da tragédia, hoje conhecida
como Casa da Pata, ruiu e, durante séculos, foi sucessivamente erguida e
reconstruída, sendo mesmo utilizada para abrigo de quem por ali passava.
E assim
nasceu a Lenda de Pilarzito…
3. – A D. ALDA FOI ENCONTRADA MORTA
De
regresso à atualidade, o Avó Palaló rapidamente ficou a saber que o
guarda-florestal, quando fazia a sua ronda normal e ao aproximar-se do riacho,
deparou com o corpo de D. Alda, residente na Casa da Pata.
O
velho guarda-florestal, ciente de como devia agir, correra até à Tasca do
Toicinho, para dar a notícia e chamar a GNR. De seguida, imediatamente,
regressara para junto do corpo, para o vigiar e garantir que ninguém lhe mexia.
Com
ele, no regresso ao riacho, teriam seguido alguns habitantes locais, alguns
daqueles que agora o rodeavam, para verem com os seus próprios olhos o que se
passava. O velho guarda-florestal, diligente, mantinha-os a uma distância
segura.
O
diagnóstico popular fora célere, “aquilo era um crime”, diziam. Se há
crime, tem de haver criminoso. Por isso, alguém se lembrara do Barata-Fino –
amante oficial, forasteiro, bem-falante e vendedor de porta a porta –, pois
teria sido visto passar na véspera.
O
Avô Palaló tivera curiosidade em saber quem fora que referira o Barata-Fino.
Afinal tinha sido a Zabel do Tó Pedreiro, roída de ciúmes, pois quem sabe se
não teria sido o próprio Tó, também caído pela dama agora morta.
Mas
quem era a D. Alda? Tratava-se de uma mulher, com trinta e tais anos, que
aparecera na vila há cerca de dois anos.
Contrastando
com as mulheres trigueiras do campo, D. Alda era uma mulher esbelta e bonita,
mimosa de pele, além de inteligente. Pelo menos o suficiente para convencer a
Marquesa de Alorna a regenerar a Casa da Pata, na altura abandonada, para sua
morada.
Como
mulher escaldante que era, rapidamente correu que teria relações íntimas com
homens da vila, transformando-se num poço de ciúme para o mulherio.
Por
fonte segura, sabia-se que recebia muitas visitas em sua casa para lhes “ler
a sorte nas cartas” e contar a Lenda de Pilarzito.
4. – A OBSERVAÇÃO DO CORPO DE D. ALDA
As
autoridades locais chegam junto do corpo: o cabo André e um subordinado, na
companhia do dr. Godinho, para observar o estado do corpo. O “sabichão”, amigo
de longa data destes, já lá estava. Que se inicie a investigação…
Tal
como na Lenda de Pilarzito, a D. Alda estava caída no riacho, com a cabeça
mergulhada de frente na água transparente. Embora, naquela zona, o riacho não
tivesse mais de três palmos, a cabeça não chegava a tocar no fundo.
O
corpo apresentava-se com os braços caídos para trás, descalço, podendo-se
observar uns sapatos ao lado de um carrinho de mão.
De
modo a permitir uma observação mais cuidada, por parte do médico, o corpo foi
retirado do riacho e deitado de costas no chão.
O
médico examinou a temperatura do corpo, observou a face congestionada de cor
azulada, apalpou o nariz e os lábios, os quais se apresentavam macerados. Na
nuca podia ser observada uma escoriação.
De
acordo com esta rápida observação do exterior do corpo, o médico considerou que
a morte poderia ter ocorrido nas últimas seis horas. Ainda assim, tinha a
certeza que não foi por submersão.
Admitiu
que a senhora poderia ter caído e batido com a cabeça numa pedra de lavar
roupa, que estava mesmo ali ao lado, mas a pancada não seria suficiente para
lhe provocar a morte.
O
cabo André, tendo notado que a vítima tinha uma unha que fora partida
recentemente, no anelar, chamou a atenção para o facto. Embora tenha sido
procurada, na proximidade do corpo, a unha partida não fora encontrada.
5. – O AVÔ PALALÓ INVESTIGA
Enquanto
o cabo André e o dr. Godinho discutiam aquilo que iam observando, o Avô Palaló
escutava-os atentamente. Repentinamente, perguntou: “André, posso ir à casa
de banho?” E, sem esperar resposta, contornou o espaço de areia em frente à
casa e entrou.
O
Avô Palaló já não entrava naquela casa desde que fora recuperada para habitação
da D. Alda. Ficou agradavelmente surpreendido, pois tratava-se de uma casa
ampla e limpa.
O
quarto, resguardado por uma cortina, ficava ao fundo. Na parte da frente, para
onde entrara, era a cozinha, onde se podia ver um fogão e um cesto com pedaços
de madeira.
Observando
o lado oposto, viu um sofá, cadeiras e uma mesa redonda com cartas dispostas
lado a lado. Sobre estas, podia-se observar a metade superior da carta que
representava a Papisa. Fora rasgada ao meio.
Descendo
o seu olhar até ao chão, viu um pedaço de madeira e uma almofada, na qual
encontrou, cravada, um pedaço de unha.
Satisfeito
com o que encontrara, encaminhou-se em direção à porta. Foi nessa altura que
encontrou a parte inferior da carta rasgada e que, sorrindo levemente, exclamou
entre dentes: “Que mulher inteligente e imaginativa! Que incrível sangue
frio diante da morte!”
De
regresso ao exterior da casa, enquanto observava a aproximação do cabo André,
apercebeu-se que o dr. Godinho já se afastava para não voltar. Voltando-se a
sua atenção para o cabo André, disse: “Tens aqui o pedaço de unha que
retirei daquela almofada e uma mensagem neste bocado de carta.”
Observando
o ar confuso do André, demasiado habitual naquelas situações, o Avô Palaló
rematou: “Vamos ver os rastos!” Lado a lado, mestre e ajudante, lá
seguiram os rastos, desde a porta da casa até ao riacho, onde fora encontrado o
corpo.
Após
uma cuidada observação foi possível distinguir três rastos. Um primeiro rasto
que parecia pertencer a um pé grande, que ficara gravado profundamente na
areia, lavada pela chuva, mas mais profundo nos calcanhares.
Depois,
um segundo rasto que parecia pertencer a um pé pequeno, marcado nitidamente no
início da marcha e depois arrastado, que parecia esconder o primeiro rasto. Por
fim, um terceiro que parecia ser um rasto da roda de um carrinho de mão que,
tal como o segundo rasto, também parecia esconder o primeiro rasto.
Não
havia dúvidas sobre o que estavam a observar, quer para o mestre, quer para o
ajudante.
Satisfeitos
com as conclusões a que chegaram depois da observação dos rastos e confirmado
que o pedaço de unha partida coincidia com o que faltava no anelar da vítima, o
Avô Palaló, olhando em frente, perguntou: “Não é a mulher do pedreiro?”
Na
margem oposta do riacho estava uma mulher que, assim que os viu, começou a
afastar-se. Sem esperar pela resposta do cabo André, o Avô Palaló disse: “Vamos,
quero falar-lhe.”
A
mulher, lamurienta, foi trazida até junto do Avô Palaló que, procurando
acalmá-la, lhe disse: “Acalma-te, é só uma pergunta. Mataste a Alda?”
Se
a ideia era acalmar a mulher, a pergunta assustou-a ainda mais, caso estivesse
já assustada, pelo que respondeu: “Credo home… Na abafi a bruxa robadeira
dos homes das outras.” [Nós traduzimos: “Credo homem… Não abafei a bruxa
ladra dos homens das outras.”)
A
conversa continuou e, no final, o Avô Palaló voltou-se para o cabo André e
disse-lhe: “Estamos falados. Vou para casa que é tempo. Agora é contigo e
com o dr. Godinho.”
Afastou-se,
primeiro na direção do seu companheiro de viagem que o aguardava e, depois,
caminhando a seu lado, seguiram na direção de Almeirim.
6. – A MORTE DE D. ALDA
O dr.
Godinho fora perentório, D. Alda não morrera de submersão, ou seja, não morrera
por afogamento. Admitiu, ainda, a possibilidade de ter caído e batido na pedra
de lavar roupa. Mas, neste caso, a pancada não seria suficiente para a matar.
Ora,
se ela tivesse caído e batido com a cabeça na pedra, sem ser fatal, ficando
depois com a cabeça mergulhada na água, apresentaria todos os indícios de morte
por submersão. O que, comprovadamente, não acontecia.
Além
do mais, a queda provocar-lhe-ia mais que uma simples escoriação na nuca,
porque seria muito pouco provável ter caído para trás. Neste caso, deveria
apresentar escoriações noutras partes visíveis do corpo, como, por exemplo, no
rosto. O que, também comprovadamente, não acontecia.
Sabemos
que, em caso de submersão, os sinais externos seriam um maior arrefecimento da
pele (“cutis anserina”), o designado “cogumelo de espuma”, a recobrir a
boca e as fossas nasais, livores mais ténues que o habitual (livores róseos) e
presença de corpos estranhos nas vias respiratórias (líquido, por exemplo). O
que, mais uma vez comprovadamente, não acontecia.
A
isto acresce que o congestionamento da face de cor azulada e a maceração dos
lábios e do nariz não são compatíveis com a morte por afogamento ou por queda
acidental.
Em
contrapartida, a face congestionada de cor azulada e a maceração dos lábios e
do nariz, apontam inequivocamente para outra causa de morte, precisamente para
asfixia por sufocação.
Na asfixia
por sufocação, contrariamente ao que acontece na submersão, no enforcamento e
no estrangulamento não há qualquer imersão dos orifícios respiratórios num
líquido, nem constrição do pescoço. Em vez disso, esta resulta da utilização de
um obstáculo à entrada de ar, através das vias respiratórias, e que leva à
morte.
A
morte de D. Alda resultou de uma asfixia pura por sufocação direta, com
obstrução da boca e das narinas, tendo sido utilizada a almofada encontrada
pelo Avô Palaló
Entre
os vários sinais externos deste tipo de asfixia, foi possível observar a
maceração dos lábios e do nariz, devido ao forte aperto da almofada, e a face
congestionada de cor azulada, ou seja, de cor cianosada.
A
face dos asfixiados apresentam-se cianóticos em função da alta concentração de
carboemoglobina e aparece quando o teor de hemoglobina não oxigenada no sangue
atinge 5%.
Tal
como (muito provavelmente) na Lenda de Pilarzito, o homicídio foi cometido
dentro de casa e o corpo foi depois transportado até ao riacho, talvez para
sugerir morte por submersão.
Tal
como dissera o dr. Godinho, nada mais dizemos sem a autópsia. Mas o dr. Godinho
ainda acrescentara que a morte teria ocorrido “nas últimas seis horas”.
Ou
seja, e agora dizemos nós, a morte não teria ocorrido no final do dia anterior,
que estaria a uma distância temporal superior a seis horas, mas já durante a
madrugada ou mesmo pouco antes do dia nascer, dentro do período horário
indicado.
7. – OS SUSPEITOS DA MORTE DA D. ALDA
Quem
deverá ser considerado suspeito de ter assassinado a D. Alda, já que a causa da
morte foi asfixia, não restando qualquer dúvida sobre tal e afastando toda e
qualquer possibilidade de morte acidental ou suicídio.
A
resposta a esta questão é óbvia, dados os ciúmes de que padecia a população feminina
casada, e não só. Se alguém poderia ter motivo para o crime, esse alguém seria
muito provavelmente uma mulher, quase de certeza casada, cujo marido não
tivesse resistido aos encantos daquela mulher esbelta, bonita e mimosa de pele.
Todavia,
embora não fosse imediatamente visível um motivo que impelisse um elemento da
população masculina a assassinar a D. Alda, não deixaria de ser possível que
tal acontecesse.
Num
eventual leque de suspeitos do grupo masculino, dois nomes surgiram à baila.
Fora a Zabel do Tó Pedreiro que lançara para a ribalta o nome do Barato-Fino,
amante oficial, talvez de algumas mulheres da vila, mas talvez também de D.
Alda.
O
Barato-Fino, alcunha que possivelmente derivava de preço de venda das peças que
levava de porta a porta, seria Barato, e do seu aspeto magro e esguio, daqui o
Fino.
Dizia
a Zabel do Tó Pedreiro que o Barato-Fino fora visto a passar por ali na
véspera. O que, de facto, seria verdade já que o Barato-Fino, fora visto
naquela manhã, pois fora surpreendido pela chuva na véspera, tal como o Avô
Palaló, e ficara retido na Pensão do Cabreiro, onde jantara e dormira.
Estamos
certos que o cabo André iria confirmar se o Barato-Fino não saíra da pensão e,
com toda a certeza, iria receber essa confirmação. Até porque, assim parece, a
pensão ficaria na margem oposta aquela onde ficava a Casa da Pata.
O segundo
nome que viera à baila fora o do próprio marido da Zabel do Tó Pedreiro, o
próprio Tó Pedreiro, que ajudara a reconstruir a Casa da Pata e que, os ciúmes
da mulher Zabel assim o demonstravam, teria ficado caído pela bela dama Alda.
Mas,
sobre este, de acordo com o que dissera a mulher Zabel, sabemos que impedido de
visitar a D. Alda, devido à chuva que caíra na noite anterior, foi dormir
acompanhado com uma “botelha d’augardente pó palheiro do Fandinga”, mas
não sem antes dar uma “tafona” à mulher.
Claro
que a Zabel do Tó Pedreiro pode estar a encobrir o marido, se bem que o olho
negro que apresentava possa constituir uma evidência para a existência da tal “tafona”
de que falara.
Tal
como antes, também estamos certos que o cabo André iria confirmar (caso fosse
possível) se o Barato-Fino passara mesmo a noite no palheiro do Fandinga, ou se
ainda lá estaria aquela hora a curar a bebedeira, pois ainda não havia qualquer
sinal dele.
8. – A MENSAGEM NA CARTA DA PAPISA
O facto
de ter sido encontrada uma carta, rasgada, representando a Papisa, permite-nos
saber que D. Alda para ler a sorte nas cartas recorria às cartas de Tarot.
As
cartas de Tarot correspondem a um baralho constituído por um total de 78
cartas, denominadas arcanos e divididas em dois grupos: um primeiro grupo
constituído pelos 22 símbolos principais denominados como arcanos maiores e um
segundo grupo formado por 56 símbolos secundários denominados como arcanos
menores
Os
arcanos maiores são numerados de 0 a 21, correspondendo cada número a um arcano
maior, por esta ordem: 0 = O Louco, 1 = O Mago, 2 = A Papisa, 3 = A Imperatriz,
e sucessivamente até 21 = O Mundo.
O
Tarot é simbólico pelo que cada arcano tem um significado oculto. Compreendido
o significado de cada um dos símbolos, as cartas transformam-se numa espécie de
alfabeto capaz de um número infinito de observações, todas elas com um sentido.
A
carta correspondente à Papisa (Figura 1) simboliza o princípio feminino
universal, sendo a expressão da meditação, da sabedoria interior e do
esoterismo e representando a intuição, a sensibilidade e os poderes mediúnicos.
FIGURA
1. – CARTA DO TAROT REPRESENTANDO A PAPISA
O Avô
Palaló encontrou a carta de Tarot representando a Papisa rasgada ao meio,
horizontalmente, estando a parte superior sobre as cartas dispostas lado a lado
em cima da mesa e tendo sido a parte inferior encontrada amarrotada no chão
junto à porta.
Tal
como se mostra na Figura 2, a parte superior da carta rasgada ao meio apresenta
a imagem que representa a Papisa, enquanto a parte inferior apresenta o que ela
tem nas mãos, bem como a sua vestimenta (para além do nome da carta).
Como
o Avô Palaló rapidamente percebeu, a mensagem deixada pela vítima não pretendia
chamar a atenção para o que estava representado em cada uma das suas partes,
após a carta ser rasgada horizontalmente, mas sim para o que ela globalmente
representava, ou seja, a Papisa.
FIGURA
2. – CARTA DA PAPISA RASGADA HORIZONTALMENTE
(a) Parte superior
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(b) Parte inferior
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A
mensagem, tal como as cartas do Tarot, também era simbólica, pelo que a parte
rejeitada (a que foi encontrada sobre a mesa) correspondia à primeira parte (ou
à parte anterior) do nome da Papisa, enquanto a parte guardada (a que acabou
por ser encontrada amarrotada, no chão) correspondia à segunda parte (ou à
parte posterior) do nome da Papisa:
- PAP
= Parte anterior do nome;
- ISA =
Parte posterior do nome.
Tal como dissera o Avô Palaló ao cabo André, “uma mensagem
neste bocado de carta”, a mensagem estava no pedaço de carta
encontrado amarrotado no chão, representando a parte posterior do nome da
Papisa: ISA.
ISA de Isabel, ou Zabel, como popularmente eram designadas as mulheres com
este nome: a Zabel do Tó Pedreiro.
Claro que a D. Alda poderia ter
tomado outra opção no momento em que decidiu deixar uma pista para
identificar o seu algoz. Alternativamente, em vez de um rasgão horizontal,
poderia ter rasgado a carta verticalmente, ficando as duas partes tal como
se mostra na Figura 3.
Se tivesse sido este o caso, a mensagem não seria apenas simbólica, mas
também textual, já que o lado direito da carta (a parte que poderia ter
sido encontrada amarrotada), resumia objetivamente a parte do nome da
Papisa relevante: a ISA.
Mas não foi este o caso! Contudo, embora não tenhamos informação que
consubstancie esta teoria, podemos admitir que, tendo a vítima rasgado a
carta horizontalmente, a possa ter guardado na mão, dobrada numa posição
vertical (embora ficasse posteriormente amarrotada).
O que poderia ajudar o cabo André a desvendar a mensagem, mas não sendo
necessário para a argúcia do Avô Palaló.
FIGURA 3. – CARTA DA PAPISA RASGADA VERTICALMENTE
(a) Lado esquerdo
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(b) Lado direito
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9. – A HOMICIDA É IDENTIFICADA
A D.
Alda, além de esbelta, bonita e mimosa de pele, era também uma mulher
inteligente, não apenas porque convencera a Marquesa de Alorna a recuperar a
Casa da Pata, mas também porque, mesmo sabendo que poderia morrer, teve o “incrível
sangue frio diante da morte”, de que nos falara o Avô Palaló, para deixar
uma mensagem identificando a sua algoz.
A
metade da carta que agarrara, com força, até soçobrar, e que até aquele momento
fatal mantivera bem presa na mão, iria permitir identificar a responsável pela
sua morte: a ISA de Isabel ou Zabel.
Para
o Avô Palaló não sobrava qualquer dúvida. Fora a Zabel do Tó Pedreiro que
assassinara a D. Alda. Mas, mesmo assim, quando a viu na margem oposta do
riacho, não deixou de querer falar com ela, na eventualidade de poder
robustecer a sua teoria.
E,
de facto, assim aconteceu.
Trazida
à presença do Avô Palaló e do cabo André, pelo subordinado deste último,
envolta em lamúrias, o Avô Palaló procurou, primeiro, que ela se acalmasse, mas
de imediato lançou a pergunta, para a qual já conhecia a resposta: “Mataste
a Alda?”
Assustada,
a Zabel do Tó Pedreiro respondeu: “Credo home… na abafi a bruxa robadeira
dos homes das outras.”
Foi
a resposta suficiente para confirmar o que o Avô Palaló já sabia, pois nesta
resposta não só mostrou ter conhecimento sobre como morrera a D. Alda, o que
até ali apenas era do conhecimento do Avô Palaló e do cabo André (além do
assassino, claro), pois nem mesmo o dr. Godinho sabia já que se retirara do
local antes do Avô Palaló partilhar os elementos que recolhera, como também
avançara com o motivo do crime.
A
causa da morte ainda não fora determinada pelo médico, mas era, para já, uma
conclusão das descobertas que o Avô Palaló fizera dentro da habitação da D.
Alda. Contudo, a Zabel do Tó Pedreiro afirmara que não “abafara” a bruxa,
quando não poderia ainda saber que a D. Alfa morrera por “abafamento”, termo
popularmente usado para designar a morte devida a asfixia por sufocação.
Sobre
o motivo para assassinar a D. Alda, tal como já consideráramos antes, eles rram
bem evidente, isto é, os fortes ciúmes provocados pela “ladra dos homens”.
10. – COMO TUDO ACONTECEU
A vida
corria dentro daquilo que seria a normalidade de uma pequena vila ribatejana,
até à chegada daquela mulher, há cerca de dois anos, que contrastava com as
mulheres trigueiras do campo, pela sua beleza e pela sua pele mimosa.
Uma
mulher irresistível para os aldeões, uma mulher da cidade no meio das mulheres do
campo. E a oportunidade de participar na reconstrução da Casa da Pata foi
aproveitada pelos homens que trabalhavam naquela área, entre eles o Tó
Pedreiro.
A
atenção que o Tó Pedreiro dava aquela esbelta mulher não passara despercebida à
sua Zabel, mulher trigueira do campo e uma autêntica bisarma. Não passara
despercebido que o seu Tó ficara caído por aquela mulher, desde os tempos em
que trabalhara na reconstrução da sua habitação. Os ciúmes rapidamente
começaram a roer a bisarma Zabel.
Pelo
menos, assim pensou ela, graças à inesperada borrasca que caíra, o Tó iria cair
nos braços da Zabel. Pura imaginação!
O
que o Tó queria mesmo, era visitar aquela mulher naquela noite. Mas ficou
irritado pela chuva que “Deus amandou”.
A
discussão entre o Tó e a Zabel, por causa daquela mulher, estalou. E estalou de
tal modo que a Zabel ainda “alevou uma tafona”, antes do Tó agarrar numa
“botelha d’augardente” e ir dormir para o palheiro do Fandinga.
Zabel
ter-se-ia aproximado de um espelho e, perante a visão do olho que começava a
enegrecer à sua frente, tomou uma decisão. Aquela mulher não viveria nem mais
um dia.
Impedida
pela chuva torrencial para sair de casa, em vez de se acalmar, ficou mais
decidida. Não conseguiu dormir e, assim que o tempo amainou, saiu de sua casa e
dirigiu-se à Casa da Pata, a habitação da “bruxa robadeira dos homes das
outras”.
A
sua chegada à Casa da Pata teria alertado a D. Alda, pois ter-se-ia
questionado: “Qual era a probabilidade de alguém lhe aparecer aquela hora tão
matinal, depois de uma autêntica borrasca, para lhe “ler a sorte nas cartas”?
Mas
teria sido essa a justificação dada pelo Zabel para que D. Alda lhe abrisse a
porta. Possivelmente chegaram mesmo a sentar-se à mesa, uma frente à outra, e
D. Alda teria distribuído as cartas do Tarot, umas ao lado das outras, tal como
o Avô Palaló as encontraria na manhã do dia seguinte.
Desconhecemos
o curso da conversa, mas a dado momento, apercebendo-se que Zabel se levantava
da mesa, D. Alda lembrou-se, caso lhe acontecesse alguma coisa, de deixar uma
pista para identificar a sua atacante. Por isso, pegou na carta da Papisa,
rasgou-a ao meio, colocou a parte superior sobre a mesa e dobrou, talvez na
vertical, a parte inferior guardando-a na sua mão.
Enquanto
D. Alda resolvia deixar uma pista sobre a sua eventual atacante, levou uma
pancada na cabeça, por trás, com um pedaço de madeira que a Zabel pegara do
cesto ali ao lado. A pancada teria como resultado a escoriação que se
observaria posteriormente na nuca, mas naquele momento tê-la-ia deixado
atordoada.
Ainda
debaixo desse atordoamento, tendo caído ao chão, percebeu que Zabel teria
pegado numa almofada e a estava a apertar fortemente contra o seu rosto. Ainda
atordoada e a sentir muita dificuldade em respirar, procurou afastar a almofada
com uma das mãos, tendo o cuidado suficiente para não largar o pedaço de carta
incriminatório guardado na outra mão.
Como
resultado desta tentativa de defesa, perante uma mulher mais forte que ela, uma
verdadeira bisarma, acabou por partir a unha do dedo anelar da mão com que se
defendia, a qual ficou cravada na almofada e que seria posteriormente
encontrado pelo Avô Palaló.
Por
fim, soçobrou ao ataque, deixando de conseguir segurar o pedaço de carta, que
cairia no chão e que também seria posteriormente encontrado pelo Avô Palaló.
Tudo
estava terminado, aquela mulher nunca mais roubaria os homens das outras
mulheres. Possivelmente, quando já se preparava para se afastar, Zabel
ter-se-ia lembrado da Lenda de Pilarzito
A
mesma lenda que D. Alda contava a quem a visitava. Porque não repetir o que a
lenda descrevia: um corpo de mulher voltaria a aparecer afogado no riacho. Ela
levaria D. Alda até ao riacho, ali perto, e colocaria a sua cabeça dentro de
água, para que parecesse que a tinham afogado, tal como acontecera com
Pilarzita.
Para
isso, apenas teria de arranjar uma forma de transportar o corpo da sua vítima
para junto do riacho.
A Zabel
do Tó Pedreiro por ser uma autêntica bisarma, com um tamanho e uma constituição
acima do normal, não teria qualquer dificuldade em pegar no corpo da sua
vítima, atirá-lo para cima das suas costas e levá-lo até junto do riacho.
Mas
não foi isso que fez, porque talvez ao fazê-lo poderia alertar as autoridades,
caso chegassem à conclusão que D. Alda fora assassinada dentro de casa e que
fora levada por alguém possante.
Por
isso, aproveitando o carrinho de mão que estaria à entrada da casa, levantou a
sua vítima e colocou-a dentro dele. O corpo da D. Alda teria ficado dentro do
carrinho de mão, enquanto as pernas e os pés ficariam de fora, estes tocando no
chão.
Era
por isso que na areia lavada pela chuva que continuava a cair, mas com menor
intensidade que no período em que durara a borrasca, se podiam observar aqueles
rastos.
O pé
grande que estava gravado profundamente na areia, mas mais nos calcanhares,
fora produzida pela própria Zabel quando pegara no corpo da sua vítima e o
colocara dentro do carrinho. O corpo ao ser pegado em força faz com que a marca
do pé seja maior no calcanhar.
Ao
baixar o corpo da sua vítima para o colocar no carrinho, um dos pés da D. Alda
teria entrado em contacto com o chão, deixando a sua marca apenas no início da
marcha.
O
rasto seguinte teria sido produzido já durante a deslocação do carrinho. A
Zabel do Tó Pedreiro, enquanto puxava o carrinho de mão, ter-se-ia apercebido
que o sapato que a sua vítima calçava teria saído do pé, pelo facto de o pé
estar a ser arrastado pelo chão, tal como as marcas deixadas o comprovam.
O
que fez ela? Interrompeu o percurso, pegou nos sapatos e colocou-os dentro do
carrinho. Depois continuou até junto do riacho, ficando o rasto da roda do
carrinho de mão escondido pelas marcas do pé pequeno descalço a ser arrastado
pelo chão.
Assim
que chegou junto do riacho, a Zabel do Tó Pedreiro voltou a levantar a sua
vítima e colocou-a na posição em que viria a ser encontrada. Já os sapatos
foram colocadas ao lado do corpo, tal como o carrinho de mão.
Os
rastos poderiam, perfeitamente, ter sido produzidos tal como descrevemos, não
havendo uma razão objetiva para se considerar que tenham sido produzidos em
momentos diferentes, ou seja, com mais que uma ida e volta.
A
ideia da utilização do carrinho de mão também serviria para eventualmente
incriminar alguém com uma constituição não tão robusta. Alguém que não pudesse
pegar no corpo, mas que mais facilmente o pudesse deslocar dentro do carrinho
de mão, pois a força necessária seria bem menor.
Mas
incriminar quem? A resposta é óbvia: o Barata-Fino. Pois não teria sido por
acaso que a Zabel do Tó Pedreiro chamou a atenção para ele.
Daniel Falcão