A HISTÓRIA DE ALVES, O EMIGRANTE FORÇADO
Apresentamos hoje a primeira parte da prova n.º 2 da competição deste ano, com um problema que retrata uma situação cada vez mais frequente, de emigração forçada pelas circunstâncias.
Como sempre acontece, reforçamos a recomendação, no sentido de que uma leitura correcta de qualquer problema, constitui uma ajuda fundamental para a sua decifração.
Aliás, uma das maiores virtudes do Policiário reside precisamente no facto de ser uma actividade intelectual quase, se não completamente perfeita, que exige saber ler correctamente um texto, interpretá-lo com rigor, proceder às pesquisas necessárias, usar adequadamente o poder de análise e depois de síntese, de modo a conseguir captar os elementos essenciais que conduzirão à decifração plena dos enigmas.
Não sendo uma tarefa fácil para os confrades que agora se iniciam no Policiário, a
experiência fará com que, a breve espaço, consigam criar um método pessoal de abordagem dos problemas, com resultados que se revelarão interessantes a médio prazo, digamos assim.
Entretanto, prestem atenção ao desafio que hoje se publica, em que o autor não faz perguntas no final, deixando os candidatos a decifradores sem saberem bem o que ele pretende. Há uma história, que tem um fio condutor que a leva a uma conclusão óbvia. O personagem, Alves, acabou emigrado, sem sabermos se com um final feliz ou não. Será aí que o autor procura e desafia a nossa capacidade de saber mais, de retirarmos do pouco que ele nos fornece, aquilo que, com lógica, podemos inferir.
CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL – 2012
PROVA N.º 2 - PARTE I
“O ALVES, EMIGRANTE OBRIGATÓRIO”, original de LUMAPE
O Alves deitou o olhar pela planície e até onde a vista alcançava, no horizonte mais profundo, só via aquela cor amarela de secura.
O gado vagueava à procura de qualquer sinal verde, que não havia.
A seca já durava há muitos meses e não dava sinais de retroceder. As reservas alimentares que guardara para os meses de verão, quando os pastos desaparecessem debaixo do sol abrasador, já estavam em vias de terminar. A crise agudizava-se e a fome parecia inevitável, tanto mais que no céu imenso, nem rasto de nuvens.
Alves desesperava.
Do Banco, onde era cliente há décadas, só vinha indiferença quanto à sua situação. De lá, só cartas de ameaças de execução, de penhoras e de tribunais. A última, recebida no dia 21, dava-lhe 15 dias para regularizar uma importância elevada, completamente fora do seu alcance.
O Alves já nem tinha cara para aparecer aos seus outros credores, ao merceeiro, ao padeiro, ao Manuel das rações, onde tinha contas avultadas por saldar. Não que algum deles o afrontasse com as dívidas, porque tinha junto deles o crédito que uma seriedade muito antiga cimentara, já desde os tempos do pai, também ele um homem apegado à terra e aos animais, que sempre cumprira a sua palavra.
A sua palavra, que por ali não era preciso papel assinado, excepto para os bancos, mas esses não faziam parte da terra, eram organismos estranhos.
Do governo, promessas e mais promessas, mas ajuda real, nem vê-la. Os homens do governo falavam em dar valor à palavra dada, mas prometiam tudo, até perante as câmaras de televisão, mas logo faziam o seu contrário, com o desprezo próprio dos incapazes.
Apesar de tudo, considerava-se um homem de sorte, porque não tinha família, ainda podia dar outros rumos à sua vida, mas pensava sempre nos seus vizinhos, com problemas iguais aos seus e com bocas, muitas bocas para alimentar em casa. A esses o Alves tentava dar uma ajuda, quando podia. Valendo-se do seu nome, conseguiu um pouco mais de crédito no merceeiro e produtos indispensáveis para os putos dos seus vizinhos, que rondavam perigosamente a fome.
Mas, a verdade era cruel.
A chuva teimava em não aparecer. Os pastos estavam secos e mortos. As rações de reserva estavam no fim. As contas acumulavam-se e o Banco fazia o cerco final. A vergonha fazia a sua parte e já não tinha cara para confrontar os seus fornecedores.
Restava-lhe vender o gado que ainda resistia, praticamente a qualquer preço e lançar-se na aventura, emigrando. As terras, essas ninguém as queria, por ali não estavam planeadas auto-estradas nem urbanizações. Restava abandoná-las à sua sorte, deixar o mato tomá-las e um dia… talvez regressar às origens e retomar o que sempre fez e sempre quis fazer.
A venda do gado e das máquinas chegava para liquidar as dívidas e ainda daria para o bilhete, só de ida.
Chegou o dia final.
Da soleira da porta, observava o movimento dos camiões transportando o “seu” gado e seguia a trajectória até a perder no horizonte. Com a partida, seguia uma parte dele, com cada animal, com cada camião.
Do aparelho de rádio de um dos camiões, ouviu-se o sinal horário. Era meio-dia certo, o locutor debitava as notícias, a ritmo martelado, certeiro. Lembrava que era dia de “são senhorio” e reproduzia com veemência as afirmações de governantes a convidarem quem estivesse mal a mudar-se, a procurar na emigração o que não tinha cá!
Sorriu para não chorar.
Não lhe restava mais nada. Correcto e empenhado, como sempre fora, discreto e trabalhador, certamente que sentia que o seu lugar era aqui, onde gostava de estar e onde pretendia dar o seu contributo para melhorar as coisas. Tinha terras, tinha gado, tinha vontade e querer, só não tinha quem lhe desse a mão na adversidade climatérica.
Nesse dia, uma grande parte do seu mundo desabou, mais ainda quando, pela tarde entrou no banco, com o dinheiro para pagar a dívida, precisamente em cima do prazo que lhe foi concedido.
A venda dessa parte do seu mundo, permitiu-lhe sair de cabeça levantada, pagar aos seus credores e comprar o bilhete, só de ida, para um local distante, onde durante alguns meses teria trabalho assegurado, com excelentes condições, arranjado por um indivíduo que andava à procura de gente trabalhadora, persistente, honesta e capaz, tudo atributos que o Alves sabia possuir. Aquilo que mais o entusiasmou, para além de poder ter trabalho e ganhar algum dinheiro, melhorando a sua situação, foi ouvir da sua boca que ia ter participação activa e ficar ligado aos acabamentos de grandes obras das Olimpíadas que iam ocorrer poucos meses depois, algures no Mundo.
O Alves não voltou a ser visto pela planície e as suas terras, se ainda são dele, estão ao abandono. Também não consta que algures no cabo do Mundo tenha ficado marca de um tal Alves, português emigrado por obrigação, em algum pilar de estádio ou piscina olímpica, mas a vida continuou, os dias foram-se sucedendo e a chuva acabou por cair e fazer brotar o pasto que já não tinha quem o comesse…
Fala-se, sem confirmação, que o Alves vagueia pelo Mundo, que foi enganado por promessas vãs, que nunca mais conseguiu reencontrar o caminho para casa, mas provavelmente o que aconteceu foi que descobriu um novo lar, junto de pessoas mais honestas e solidárias.
A verdade, nunca a saberemos toda. Ninguém sabe a verdade toda!
Ah! Os governantes que aconselharam a emigração aos seus cidadãos, já ninguém se lembra deles, mas as marcas ficaram, irremediavelmente, na pobreza e miséria que deixaram atrás de si, como um sulco profundo que não consegue cicatrizar.
E pronto.
Depois das leituras que forem necessárias e que nunca são demais, resta aos nossos confrades “detectives” tentarem responder ao problema e deixarem a sua parte na descoberta da verdade sobre este emigrante obrigatório.
Para esse efeito, poderão responder, impreterivelmente até ao próximo dia 31 de Março, utilizando um dos seguintes meios:
- Pelos Correios para PÚBLICO-Policiário, Rua Viriato, 13, 1069-315 LISBOA;
- Por e-mail para policiario@publico.pt;
- Por entrega em mão na redacção do PÚBLICO de Lisboa;
- Por entrega em mão ao orientador da secção, onde quer que o encontrem.
Boas deduções.
1 comentário:
Este é um problema muito estranho. Parece que não está completo e vai ser bem complicado
I Alegria
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