TEXTO DA CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE DE ÉVORA, NO DIA 29 DE MARÇO DE 2012
Boa
tarde.
Antes
de tudo o mais quero agradecer o convite que me foi endereçado pelo professor
João Nabais para estar aqui presente e poder falar um pouco sobre Policiário e
também, claro, agradecer a presença de todos.
[Em
fundo, como podem ver, estão a passar algumas fotos que pretendem ilustrar um
pouco o que foi e é o Policiário, que deve muito a esse senhor de barbas
brancas, já falecido, que dava pelo nome de SETE DE ESPADAS, porque entre nós,
conhecemo-nos por “nomes de guerra” que adoptamos. Eu sou o Inspector Fidalgo.]
E
o meu agradecimento é tanto maior quanto se dá a circunstância de pela primeira
vez poder estar perante uma plateia de pessoas da Química, o que é um tanto
inusual, uma vez que normalmente são as pessoas do Direito e da Justiça, que mais
chamam o Policiário.
Reconheçamos,
no entanto, que faz todo o sentido que seja a Química a reivindicar cada vez
mais o papel principal no combate ao crime, tal é o desenvolvimento actual da
ciência e da técnica na resolução dos casos criminais. O CSI é hoje uma
realidade transmitida e ampliada por séries televisivas atractivas e muito
dinâmicas, ainda que nem sempre retratem a realidade.
Mas,
se a Química é hoje uma componente fundamental para a resolução dos crimes, também
não faz mais do que a sua obrigação, porque uma imensa maioria dos crimes
cometidos, ditos de sangue (assassínios, agressões, violações, etc.), têm
também a sua origem na própria Química (…)
É
a “Química” das pessoas, as reacções pessoais que conduzem à grande maioria
desses crimes, digamos, circunstanciais, não planeados. Uma palavra dita no
momento errado, excessiva, pode despoletar uma reacção fortíssima,
desproporcionada, que conduza ao cometimento de um crime. É o vulgar “perdeu a
cabeça”… “passou-se”!
Portanto,
digamos que uma certa “Química” é causa principal de actos que uma outra
“Química” vai resolver…
O
tema que escolhi, “Policiário, uma ferramenta para a vida”, pode parecer um
pouco pretensioso, arrogante mesmo, mas vou tentar mostrar que nenhum desses
conceitos e sentimentos está por detrás da sua escolha.
O
termo Policiário foi desenvolvido pelo Sete de Espadas, a partir da designação
que foi dada por Fernando Pessoa que em carta escrita ao seu amigo Adolfo
Casais Monteiro referia que estava a trabalhar numa novela policiária,
supostamente “O Roubo na Quinta das Vinhas”. Esta carta, de 13 de Fevereiro de
1935, foi o ponto de partida para a designação do nosso passatempo.
É
bom que fiquemos já cientes que o crime que mais nos interessa não é o que
referimos atrás, como circunstancial, como reactivo, como “Químico”, mas sim
aquele que é planeado, estruturado por um cérebro o mais brilhante que for
possível.
Também
é bom que percebamos que a nossa actividade é levada muito a sério por todos nós,
ou seja, mesmo tratando-se da decifração de enigmas ficcionados, de forma
lúdica, essa decifração obedece a todas as regras de uma investigação real.
Finalmente,
nem tudo se passa em redor do crime. É possível e muitas vezes acontece, haver
desafios onde a actividade criminal não está presente, por exemplo, pedir-se
aos detectives que descubram qual foi a criança que comeu um bolo que não era
suposto ser comido, ou qual dos empregados cometeu um erro numa encomenda, ou
qual foi o aluno que pregou uma partida a um professor, etc.
Aqui
chegados, vamos lá falar da TAL “ferramenta” que nos traz aqui:
Reparem
só num pequeno extracto da novela de Fernando Pessoa, já referida, “O Roubo na
Quinta das Vinhas”, para termos uma ideia daquilo que a ferramenta Policiário
nos pode “ensinar” para a vida:
Diz
o Dr. Abílio Quaresma, o investigador de Pessoa, a dado momento:
“Um
exemplo: passo por uma rua e vejo um homem caído no passeio. Instintivamente me
pergunto: porque é que este homem caiu aqui?
Já
aqui vai um erro de raciocínio e, portanto, uma possibilidade de erro de facto.
Eu não vi o homem cair ali. Vi-o já caído. Não é, portanto, um facto para mim
que o homem caísse ali. O que é um facto para mim é que ele está caído ali (…)
Creio ter-lhes mostrado bem como é complicado o que parece tão singelo. É
preciso, em qualquer problema, separar cuidadosamente, logo no princípio, os
dados e as conclusões…”.
Mais
claro, não podia ser…
O
Policiário coloca cada participante perante as várias situações possíveis, ou
seja, como vítima, como testemunha, como suspeito, como criminoso e como
detective. Portanto, o criador do enigma tem que juntar todos os
intervenientes, colocar cada qual no seu lugar, estudar e planear a cena onde
se desenvolve a acção, deixar os indícios que conduzam à decifração, apontando
a um único culpado e ilibando os restantes.
Quer
isto dizer que um produtor de enigmas policiários tem que dominar toda a acção,
porque não lhe é apresentado um caso, ele tem é que fazer esse caso.
Ao
decifrador cabe interpretar os elementos que lhe são fornecidos e chegar a um
resultado lógico.
É
nesta lógica que reside, em grande parte “a ferramenta”. O policiarista
confronta-se, a todo o momento, com a lógica das ilações que vai retirando dos
factos que lhe são apresentados, desenvolvendo, portanto, uma cadeia lógica de
raciocínio, que vai poder aplicar na sua vida.
Não
é por acaso que as pessoas mais capazes de ler, interpretar, encadear
logicamente os dados fornecidos, retirando as ilações necessárias, ficam muito
mais apetrechados para a sua vida profissional e pessoal, conseguindo dar
respostas mais rápidas e certeiras às questões e constrangimentos que surjam.
Aí,
o Policiário assume-se como uma ferramenta importante.
Mas
há também a vertente de prevenção. Um policiarista entende melhor as situações,
ao ficar perante elas, porque aprendeu a lidar diariamente com elas, na ficção.
Assim é muito melhor observador, detecta e aponta pormenores fundamentais para
a posterior captura do criminoso, sabe o que é essencial que anote na sua
memória visual, auditiva e sensorial. É uma testemunha agradável para um
investigador.
Há
histórias engraçadas, jocosas, muito falaciosas, sobre testemunhas e ilusões, como
por exemplo a de um crime que é cometido e há duas testemunhas que juram que
viram o criminoso. Quando chega o momento da identificação, os dois apontam um
certo indivíduo, sem reservas. Já no julgamento, ambos são taxativos na
identificação, mas então aparece um irmão gémeo do suspeito, igualzinho! As
testemunhas hesitam, não conseguem apontar qual deles viram no local do crime…
Problema
insolúvel? Nem por isso, o juiz ordena a reclusão de ambos e retoma o
julgamento duas semanas depois. Nessa audiência, um dos manos aparece gordo e
anafado, rosado, respirando saúde, enquanto o outro está enfezado, magríssimo…
O juiz não tem dúvidas, manda libertar o gorducho…
A
conclusão é simples, “o que não mata, engorda!”
Isto
foi apenas uma brincadeira…
Mas
uma das facetas mais importantes é aquela que se relaciona com o ensino e a aprendizagem.
Não
é tanto para vocês, que já estão no curso que pretendem (mais ou menos, em
alguns casos, porque às vezes não se entra no curso escolhido), mas a nível do
secundário ou mais baixo ainda, há matérias que manifestamente não atraem as
simpatias, sendo um martírio para quem dá essas aulas, como será um martírio
para quem tem de as receber.
Aí,
o Policiário pode ser a gazua que abra as portas fechadas, mercê da
apresentação da matéria sob a forma de enigmas para decifrar, metendo “buchas”
aqui e ali, questões a exigirem decifração apenas ou maioritariamente com a
ajuda das “células cinzentas”. É na utilização destas que se deve apostar.
Deixem-me
contar uma história verdadeira que se passou nos anos 80 do século passado,
numa escola problemática da zona de Lisboa, num subúrbio onde se cruzavam
alunos de “n” nacionalidades, raças, etnias.
Eram
alunos entre os 14 e os 16 anos e o conselho directivo da escola resolveu criar
actividades extracurriculares, que decorriam nas tardes em que os alunos não
tinham aulas. Fui convidado para ministrar algumas horas e fiquei com uma sala
de 20 e tal alunos, completamente desinteressados, em que todos falavam,
gritavam uns com os outros e só dois ou três permaneciam calados porque estavam
a dormir…
Bom,
as primeiras aulas foram surrealistas, porque não me calei nem um bocadinho,
embora soubesse que ninguém me ouvia, mas os jovens iam aparecendo.
Quando
o tempo ajudou, levei aquela malta para o exterior da sala e começámos a
procurar indícios, pequenas coisas interessantes, observando o terreno,
apanhando objectos com os cuidados próprios para não haver contaminação. Umas
lupas serviram para aumentar o interesse. Umas impressões digitais levantadas
de vidros, com ajuda de fita-cola; umas pegadas de que fizemos moldes, para
guardar e mais tarde comparar para sabermos a quem pertenciam; calculámos
alturas a partir do tamanho de pegadas, vimos e comparámos objectos no
microscópio etc., etc. ...
Curiosamente,
passado algumas semanas já não eram 20 e tal os alunos, mas mais de 40, a
quererem experimentar…
Distribui,
então, pequenos textos com problemas policiários muito simples e as respostas
foram excelentes. Quando as férias da Páscoa se aproximaram, dei livros
policiais a todos e muitos leram-nos e discutimos os crimes e alguns até tinham
ideias diferentes sobre o fim da história, outros mostravam-se zangados por
serem “enganados” pelo autor…
Durante
aquelas horas, a atenção dos alunos era excelente, traziam representações de
crimes e a sala assistia e tentava decifrá-los e no fim era grande a discussão,
em que muitas vezes o autor não saia lá muito bem…
Os
resultados escolares subiram bastante, porque passou a ser “quase” condição
necessária para frequentar o Policiário que houvesse boas notas nas disciplinas
curriculares e os alunos pediam ajuda nos estudos.
Os
próprios professores das cadeiras ficaram espantados com a alteração produzida.
Não
retiro, naturalmente, qualquer ilação científica, porque não foi uma
experiência estudada, estruturada, foi um bocado ao sabor da corrente, mas que
se registaram grandes avanços naqueles jovens, isso foi inegável.
Claro
que as resistências foram muitas, houve queixas por estarmos a “incentivar a
violência e o crime” nas “criancinhas” e ainda antes do final do ano, a
pretexto de mais uma alteração curricular qualquer, foram suspensas aquelas
aulas.
Alguns
desses jovens, hoje bem trintões, decifram enigmas na secção de Policiário que
aos domingos oriento no PÚBLICO vai para 20 anos, que se completam no próximo
dia 1 de Julho.
Em
suma, o Policiário é uma actividade lúdica aberta a todos, que nos permite
fabricar os nossos crimes, os nossos desafios, dar vida (e morte também!) aos
personagens que queremos, nas situações pretendidas. Mas também nos permite
decifrar os enigmas propostos, aplicando a leitura, a interpretação, a análise
dos textos, etc.
E
como usamos, na feitura e decifração, todos os instrumentos reais de uma
investigação, bem podemos dizer que somos detectives a sério, agimos como eles
e ainda acrescentamos o domínio da escrita, que nós necessitamos e eles nem por
isso.
Permitam-me,
apenas, que vos dê dois exemplos daquilo que é o Policiário.
Vejam
esta cena: Um indivíduo muito rico (nós gostamos muito de vítimas ricas porque
ficamos logo com um motivo para o crime) não tem filhos, sofre de uma doença
terrível e resolve chamar os sobrinhos que são seus herdeiros e diz-lhes: A
minha fortuna vai toda para aquele que acabar com o meu sofrimento. Este papel
diz isso mesmo e fica aqui guardado para que a minha fortuna seja entregue a
quem acabar com o meu sofrimento…
Claro
que no dia a seguir o ricaço já era e foi caricato ver os sobrinhos um a um
irem à polícia dizer que mataram o tio e explicar como o fizeram. No texto
davam-se os elementos que permitiam concluir que um deles era o responsável e
no fim perguntava-se: Quem herdou a fortuna?
Nessa
pergunta estava toda a diferença. Não se perguntava quem matou o tio, mas quem
herdou. E pela lei portuguesa, quem atenta contra a vida de alguém, não pode
herdar desse alguém! O que matou e que parecia que ia ficar rico, foi o único
que não herdou!
Outro
problema tratava de um crime cometido numa aldeia onde não havia luz nocturna e
às tantas, um personagem vem dizer que assistiu ao crime, quando passou no
local, aproveitando o momento em que o criminoso se voltou e o luar permitiu
ver-lhe as feições e reconhecê-lo.
Todo
o texto era perfeito, sem erros nem pistas de nenhuma espécie. Era claro como a
água. No título é que estava a solução do problema: Na Noite do Eclipse!
Eclipse
à noite, apenas da Lua e para que ocorra, esta tem que estar em fase de Lua
Nova. Não há luar!
Estes
dois casos são o retrato daquilo que o Policiário nos pode surpreender a cada
passo e que espero vos possa aguçar a curiosidade para virem “espreitar” o que
fazemos e o que nos atrai tanto.
Muito
obrigado pela vossa atenção. Foi um prazer estar convosco.
Boa
Química e boas deduções!