As memórias do Policiário passam, também, por algumas pessoas que, não tendo tido uma participação muito assídua nos torneios, por indisponibilidade pessoal ou por ausência de um espírito mais competitivo, nunca deixaram de acompanhar e participar, cada qual à sua maneira, naquilo que gostam, ou seja, no mundo Policiário.
Como muitas vezes temos referido, são muitas as formas de viver o Policiário e temos exemplos magníficos que podemos apontar. Um dos mais significativos é o de M. Lima, confrade do Porto, que mesmo depois de abandonar a decifração continuou a acompanhar todas as movimentações e a comparecer, quando possível, nos convívios; outro exemplo é o confrade L.S., de Coimbra, que não enjeita uma possibilidade de estar com os restantes confrades, nos eventos que levamos a cabo; ou Lima Rodrigues, durante muitos anos provedor da nossa secção e desde há muito afastado da problemística; ou mestre M. Constantino, que não entrando nas competições como decifrador, mantém uma actividade invejável como produtor de problemas e conviva por excelência, sempre que a vida pessoal permite.
São muitos os exemplos que demonstram que, uma vez policiarista, policiarista até ao fim! Era o que o nosso “Sete de Espadas” referia amiúde, como sendo “o bichinho do policiário”, que uma vez picando, jamais deixa de produzir o seu efeito. Será essa a razão para muitos dos nossos confrades regressarem ao nosso convívio muitos anos depois de terem dado como terminadas as suas participações!
Também a nossa homenageada de hoje pode ser englobada neste rol. Depois de uma vida intensa de participação nos torneios radiofónicos de Artur Varatojo, no celebérrimo Quinto Programa, sempre se manteve ligada à tribo policiaria, cultivando a literatura policial e escrevendo textos de inegável valor, sobre a temática policial, muitos deles publicados nestas nossas páginas.
Natércia Leite é a nossa homenageada de hoje, para que se mantenha a memória de uma lutadora contra a hipocrisia e o desmazelo, que ela odiava como ninguém.
HOMENAGEM A NATÉRCIA LEITE
Hoje, vamos homenagear uma figura importante do policiário, infelizmente um tanto esquecida, por não ter tido uma participação activa nas nossas competições, como decifradora, desde há muito.
Com uma vida literária intensa, quer como escritora de grande imaginação, com uma forte presença do mistério e grande poder de observação, quer na poesia, Natércia Leite foi sempre uma pessoa atormentada pela ausência de oportunidades, desaparecendo sem nunca ter podido cumprir o seu maior sonho: publicar um livro.
Natércia foi, podemos dizê-lo com certeza, uma das pioneiras do policiário, escrevendo muitos desafios e contos para o Quinto Programa, que Artur Varatojo manteve na rádio e onde se cruzou com muitos dos mais importantes vultos do policial, tais como, a título de exemplo, Sete de Espadas, M. Constantino, Lima Rodrigues, Domingos Cabral.
Na nossa secção, que Natércia seguia com a atenção que a sua doença permitia, muitos foram os textos que aqui viram a luz do dia e foi uma participante activa nos concursos de contos que promovemos, conquistando alguns prémios.
Mas, o prémio maior foi, sem dúvida, para todos os que tivemos a oportunidade de a conhecer nos convívios ou outros eventos.
O problema que hoje publicamos é um bom exemplo do seu modo de encarar o policiário, mas é um tanto diferente do que lhe era habitual, por ser curto. Natércia adorava escrever e a descrição dos personagens e dos ambientes era um exercício que raramente dispensava.
O caso de uma estranha morte foi publicado em 24 de Abril de 1945, na secção “Mistério e Aventura”, em “A Vida Mundial Ilustrada” e é o desafio que hoje vamos recordar, em memória desta Mulher que deixou uma marca indelével no Policiário.
A ESTRANHA MORTE DE FERNANDO FARIA
Desafio de Natércia Leite
O detective Santos foi chamado apressadamente a casa dos irmãos Faria, dois notáveis engenheiros. Aí, o criado, assustado, contou que um dos patrões há muito que fora para o banho e ainda não voltara. Como o outro patrão tivesse saído nesse intervalo de tempo, ele preferira recorrer à polícia.
Então, o detective Santos encaminhou-se para a sala de banho. A porta estava fechada. Mas como se tratava de uma fechadura vulgar, o detective utilizou uma das muitas chaves que sempre trazia consigo e conseguiu abri-la facilmente.
Lá dentro deparou-se-lhe um espectáculo bem triste. Entre os vapores de água jazia Fernando Faria. A sua cabeça estava tombada para o peito. E, na nuca, tinha uma horrível brecha.
O detective Santos pode constatar logo que a morte fora instantânea.
O detective fez um rápido esboço do que estava à vista.
Depois, voltou à outra sala para melhor interrogar o criado. Ainda assustado, ele confessou:
– O senhor Fernando discutiu furiosamente de manhã com o senhor Francisco. Depois, aí pelas onze horas, foi meter-se na casa de banho. O senhor Francisco saiu às onze e meia. Lá para o meio-dia e meia hora, como o senhor Fernando não aparecesse, fui bater à porta da casa de banho. Ele não respondeu. Ainda procurei ver pela fechadura mas a chave, do lado de dentro, não me deixou ver nada. Então, resolvi telefonar-lhe...
Passados momentos, regressou a casa Francisco Faria, o irmão do morto, interrogado logo pelo detective, ele declarou:
– Sim. Discuti com ele, de manhã, pois acusei-o de me ter roubado uns planos valiosos. Ele não mos devolveu, dizendo que não os tinha. Saí furioso. Mas, apesar de tudo, era bastante seu amigo.
O detective Santos olhou sorridente para os dois homens. Já tinha achado a “chave do caso”.
QUESTIONÁRIO
1º – O criado falou verdade? Porquê?
2º – Francisco Faria falou verdade? Porquê?
3º – Fernando Faria suicidou-se? Porquê?
4º – Qual deve ter sido a solução do detective Santos?
SOLUÇÃO
A ESTRANHA MORTE DE FERNANDO FARIA
Solução do enigma publicado na semana passada, pela autora Natércia Leite:
1º – As declarações do criado foram falsas. Se o patrão tivesse estado tanto tempo no banho, a água estaria fria e não emanaria ainda vapores. Também não podia a chave tê-lo impedido de espreitar, pois que não se encontrava lá chave alguma, dada a facilidade com que o detective Santos abriu a porta. Além disso, se o criado queria fazer supor que o patrão se suicidara, caía num erro porque a cabeça batendo contra a banheira, ao ponto de abrir uma profunda brecha na nuca, não viria tombar depois sobre o peito.
2º – Nada nos pode levar à conclusão que Fernando Faria não tenha falado verdade. Há apenas a contradição da hora de saída. Mas, dadas as outras mentiras do criado, é fácil supor que ele tivesse insinuado uma falsa hora de saída de Francisco Faria, com intenção mais do que duvidosa...
3º – Fernando Faria não se suicidou. A ferida profunda que apresentava na nuca, não poderia ser feita por ele próprio. Além disso, se se tivesse suicidado, o instrumento de que se servira devia estar bem à vista.
4º – Se Fernando Faria não se suicidou, havia um criminoso. E o criado devia ter sido o criado, porque prestara propositadamente falsas declarações. E de facto, preso, ele confessou o crime. Roubara os documentos e com medo que o patrão descobrisse, porque já desconfiava dele, aproveitou a zanga havida de manhã, e matou, para fazer cair as culpas sobre Fernando Faria. Mas, ao mesmo tempo, receoso de possíveis consequências, quis também fazer acreditar num suicídio. Porém, o vapor de água e a chave hipotética traíram-no irremediavelmente...
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