domingo, 18 de dezembro de 2011

POLICIÁRIO 1065



 O FERNANDO PESSOA POLICIÁRIO


Poucos meses antes de falecer em Lisboa, Fernando Pessoa escreveu uma célebre carta ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Fevereiro de 1935, manifestando-lhe que estava a trabalhar numa novela policiária.
Hoje é mais ou menos consensual que se tratava de “O Roubo na Quinta das Vinhas” e ficamos a saber que Fernando Pessoa se debruçou sobre a temática policial e a desenvolveu, embora de forma algo anárquica, uma vez que nunca terá chegado ao final de qualquer dos seus trabalhos, ou seja, ao momento em que apenas faltaria a sua publicação.
Devemos a Fernando Luso Soares, um dos estudiosos mais brilhantes da obra policiária de Pessoa, a recolha de um imenso espólio de manuscritos e peças isoladas que ele, com muita dedicação e empenho, compilou e a que deu alguma coerência.


O DR. ABÍLIO QUARESMA


O Dr. Quaresma é o personagem policiário por excelência, de Fernando Pessoa. Sobre ele, escreve:
“É curioso como certos assuntos nos talham a mente conforme a sua natureza. Fui verdadeiramente amigo de Quaresma; verdadeiramente me dói a saudade dele; mas ao escrever a seu respeito, assumo, sem querer nem sentir, como aliás sempre faço, a frieza de quem é o meu tema, e não consigo ter uma lágrima em prosa. A personalidade de Quaresma insinua-se no que escrevo; meu estilo recusa-se a não ser frio. O mais curioso é que essa individualidade apagada e mortiça, vivendo toda uma vida subjectiva de problemas objectivos, ganhava uma nova e milagrosa energia quando resolvia um problema difícil. O Dr. Quaresma, normal, era um apenso débil à humanidade; o Dr. Quaresma, depois de decifrar, erguia-se num pedestal íntimo, hauria forças incógnitas, já não era a fraqueza de um homem; era a força de uma conclusão. Não se transformava – não direi tanto - mas transfigurava-se sem se transformar…”.

Há quem defenda que Pessoa iria desenvolver um novo heterónimo na figura do Dr. Abílio Fernandes Quaresma, um investigador de inteligência rara e espírito observador, que refere: “ A investigação de qualquer assunto depende, essencialmente, da plena segurança dos raciocínios (…) Nós não vemos só com os sentidos; vemos misturadamente, com a inteligência também. Elimino, agora, a hipótese anormal da alucinação. Refiro-me apenas à experiência normal. Um exemplo: passo por uma rua e vejo um homem caído no passeio. Instintivamente me pergunto: porque é que este homem caiu aqui? Já aqui vai um erro de raciocínio e, portanto, uma possibilidade de erro de facto. Eu não vi o homem cair ali. Vi-o já caído. Não é, portanto, um facto para mim que o homem caísse ali. O que é um facto para mim é que ele está caído ali (…) Creio ter-lhes mostrado bem como é complicado o que parece tão singelo. É preciso, em qualquer problema, separar cuidadosamente, logo no princípio, os dados e as conclusões…”.


A INTELIGÊNCIA NO POLICIÁRIO


Uma das marcas mais significativas da obra policiária de Fernando Pessoa vem, curiosamente, de uma personagem que aparece no conto esboçado “Janela Estreita” e que, à primeira vista, parece ser um novo investigador, em contraponto com o Dr. Quaresma e o Chefe Guedes. Trata-se do Tio Porco, um ser fascinante que diz a certo ponto:
“A inteligência humana pertence a uma de três categorias. A primeira categoria é a inteligência científica. É a sua, sr. Chefe Guedes. A inteligência científica examina os factos, e tira deles as suas conclusões. Direi melhor: a inteligência científica observa, e determina, pela comparação das coisas observadas, o que vêm a ser os factos. A inteligência filosófica – esta é a tua, Abílio – aceita, da inteligência científica, os factos já determinados e tira deles as conclusões finais. Direi melhor: a inteligência filosófica extrai dos factos, o facto. (…) Ora, além destes dois tipos de inteligência, há outro, a meu ver superior, que é a inteligência crítica. Eu tenho a inteligência crítica… (…) A inteligência crítica é de dois tipos – instintivo e intelectual. A inteligência crítica e instintiva vê, sente, aponta as falhas das outras duas, mas não vai mais longe; indica o que está errado, como se o cheirasse, mas não passa disso. A inteligência crítica propriamente intelectual faz mais que isso: determina as falhas das outras duas inteligências, e depois de as determinar constrói, reelabora o argumento delas, restitui-o à verdade onde ela nunca esteve.”

Pelo que se transcreveu chegamos à conclusão que o Tio Porco – de que desconhecemos o motivo para tal baptismo, mas que certamente não foi originado por um certo pedantismo que lhe está associado e que percebemos ao longo das suas dissertações, por não ser esse o método normalmente seguido por Pessoa -, a quem se não consegue atribuir um papel definido, não é um investigador policial. E isso porque ele mesmo se exclui ao assumir ser possuidor de uma inteligência crítica. Ora, uma investigação policial é sempre originada num processo por resolver e a inteligência crítica actua como correctora das falhas das outras inteligências.
Esta teia que Pessoa cria em torno das coisas, nos seus esboços, deixa-nos com água na boca para imaginarmos o que seriam as suas novelas, se concluídas, pelo menos em termos de construção!


UM CASO PARA ESTUDO: “O ROUBO NA QUINTA DAS VINHAS”


Motivo de muitos estudos, a obra “O Roubo na Quinta das Vinhas” tem dividido muitos pessoanos convictos, tal o modo como está concebida e enquadrada.
Pessoa coloca em cena dois narradores, cada qual com a sua visão e o seu processo, em que cada um escuta o outro e assume (ou não) o conhecimento por ele transmitido. Há uma permanente desconfiança mútua e um analisar constante dos factos e das conclusões.
O diálogo fascinante entre o Dr. Quaresma e o Sr. Claro é, sem qualquer dúvida, um dos pontos altos da obra policiária de Pessoa e conduziu mesmo a um ensaio apresentado no Encontro Internacional do Centenário de Fernando Pessoa – Um Século de Pessoa, de autoria de Gersey Bergo Yahn, professora das Faculdades Metropolitanas de São Paulo, Brasil, sob o título “Um exercício sobre o dualismo: razão/fantasia em O Roubo na Quinta das Vinhas”.
A “luta” entre ambos vai recrudescendo de nível, até um ponto quase ensurdecedor, mesmo quando ambos estão em silêncio. É um ambiente em crescendo que termina de forma bombástica com a decifração do crime.
“Como uma bola de sabão, estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso no vácuo interior (…) No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa… não pude… e então compreendi violentamente quanto pode em nós, se sabem excitá-la, a consciência da culpabilidade”.
O final é devastador e deixa no ar a força que nos impede de fechar o livro, de mudar de assunto, quando o Dr. Quaresma olha para o Tejo em vez de olhar o seu opositor, o que faz com que este refira que “com cada fracção de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço”.
A autora do ensaio acima referido conclui: “Nada mais há a fazer. O essencial foi a decifração do enigma para um e, para o outro, é o avassalador sentimento de culpa e a enorme obrigação do homem para consigo mesmo”.

Fernando Pessoa, ele mesmo, policiarista por excelência!

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