FERNANDO PESSOA POLICIÁRIO
Regressamos a Fernando Pessoa,
ainda com os ecos do 125.º aniversário do seu nascimento, comemorado no passado
dia 13, dia de Santo António e em vésperas do 21.º aniversário da nossa secção,
que se festeja amanhã, dia 1 de Julho.
O DR. ABÍLIO QUARESMA
O Dr. Quaresma é o personagem
policiário por excelência, de Fernando Pessoa. Sobre ele, escreve:
“É curioso como certos assuntos
nos talham a mente conforme a sua natureza. Fui verdadeiramente amigo de
Quaresma; verdadeiramente me dói a saudade dele; mas ao escrever a seu
respeito, assumo, sem querer nem sentir, como aliás sempre faço, a frieza de
quem é o meu tema, e não consigo ter uma lágrima em prosa. A personalidade de
Quaresma insinua-se no que escrevo; meu estilo recusa-se a não ser frio. O mais
curioso é que essa individualidade apagada e mortiça, vivendo toda uma vida
subjectiva de problemas objectivos, ganhava uma nova e milagrosa energia quando
resolvia um problema difícil. O Dr. Quaresma, normal, era um apenso débil à
humanidade; o Dr. Quaresma, depois de decifrar, erguia-se num pedestal íntimo,
hauria forças incógnitas, já não era a fraqueza de um homem; era a força de uma
conclusão. Não se transformava – não direi tanto - mas transfigurava-se sem se
transformar…”.
Sem se desenvolver como um novo
heterónimo o Dr. Abílio Fernandes Quaresma era um investigador de inteligência
rara e espírito observador, que refere: “ A investigação de qualquer assunto
depende, essencialmente, da plena segurança dos raciocínios (…) Nós não vemos
só com os sentidos; vemos misturadamente, com a inteligência também. Elimino,
agora, a hipótese anormal da alucinação. Refiro-me apenas à experiência normal.
Um exemplo: passo por uma rua e vejo um homem caído no passeio. Instintivamente
me pergunto: porque é que este homem caiu aqui? Já aqui vai um erro de
raciocínio e, portanto, uma possibilidade de erro de facto. Eu não vi o homem
cair ali. Vi-o já caído. Não é, portanto, um facto para mim que o homem caísse
ali. O que é um facto para mim é que ele está caído ali (…) Creio ter-lhes
mostrado bem como é complicado o que parece tão singelo. É preciso, em qualquer
problema, separar cuidadosamente, logo no princípio, os dados e as
conclusões…”.
A INTELIGÊNCIA NO
POLICIÁRIO
Uma das marcas mais
significativas da obra policiária de Fernando Pessoa vem, curiosamente, de uma
personagem que aparece no conto esboçado “Janela Estreita” e que, à primeira
vista, parece ser um novo investigador, em contraponto com o Dr. Quaresma e o
Chefe Guedes. Trata-se do Tio Porco, um ser fascinante que diz a certo ponto:
“A inteligência humana pertence a
uma de três categorias. A primeira categoria é a inteligência científica. É a
sua, sr. Chefe Guedes. A inteligência científica examina os factos, e tira
deles as suas conclusões. Direi melhor: a inteligência científica observa, e
determina, pela comparação das coisas observadas, o que vêm a ser os factos. A
inteligência filosófica – esta é a tua, Abílio – aceita, da inteligência
científica, os factos já determinados e tira deles as conclusões finais. Direi
melhor: a inteligência filosófica extrai dos factos, o facto. (…) Ora, além
destes dois tipos de inteligência, há outro, a meu ver superior, que é a
inteligência crítica. Eu tenho a inteligência crítica… (…) A inteligência
crítica é de dois tipos – instintivo e intelectual. A inteligência crítica e
instintiva vê, sente, aponta as falhas das outras duas, mas não vai mais longe;
indica o que está errado, como se o cheirasse, mas não passa disso. A
inteligência crítica propriamente intelectual faz mais que isso: determina as
falhas das outras duas inteligências, e depois de as determinar constrói,
reelabora o argumento delas, restitui-o à verdade onde ela nunca esteve.”
Pelo que se transcreveu chegamos
à conclusão que o Tio Porco, a quem se não consegue atribuir um papel definido,
não é um investigador policial, porque ele mesmo se exclui ao assumir ser
possuidor de uma inteligência crítica. Ora, uma investigação policial é sempre
originada num processo por resolver e a inteligência crítica actua como
correctora das falhas das outras inteligências.
UM CASO PARA ESTUDO:
“O ROUBO NA QUINTA DAS VINHAS”
Motivo de muitos estudos, a obra
“O Roubo na Quinta das Vinhas” tem dividido muitos pessoanos convictos, tal o
modo como está concebida e enquadrada.
Pessoa coloca em cena dois
narradores, em que cada um escuta o outro e assume (ou não) o conhecimento por
ele transmitido. Há uma permanente desconfiança mútua e um analisar constante
dos factos e das conclusões.
O diálogo fascinante entre o Dr.
Quaresma e o Sr. Claro é, sem qualquer dúvida, um dos pontos altos da obra
policiária de Pessoa e conduziu mesmo a um ensaio apresentado no Encontro
Internacional do Centenário de Fernando Pessoa – Um Século de Pessoa, de
autoria de Gersey Bergo Yahn, professora das Faculdades Metropolitanas de São
Paulo, Brasil, sob o título “Um exercício sobre o dualismo: razão/fantasia em O
Roubo na Quinta das Vinhas”.
A “luta” entre ambos vai
recrudescendo, até um ponto quase ensurdecedor, mesmo quando ambos estão em
silêncio. É um ambiente em crescendo que termina de forma bombástica com a
decifração do crime.
“Como uma bola de sabão,
estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso no vácuo interior
(…) No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma
atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa… não pude… e então compreendi
violentamente quanto pode em nós, se sabem excitá-la, a consciência da
culpabilidade”.
O final é devastador e deixa no
ar a força que nos impede de fechar o livro, de mudar de assunto, quando o Dr.
Quaresma olha para o Tejo em vez de olhar o seu opositor, o que faz com que
este refira que “com cada fracção de segundo do meu silêncio a minha
culpabilidade enchia o espaço”.
A autora do ensaio acima referido
conclui: “Nada mais há a fazer. O essencial foi a decifração do enigma para um
e, para o outro, é o avassalador sentimento de culpa e a enorme obrigação do
homem para consigo mesmo”.
Fernando Pessoa, ele mesmo,
policiarista por excelência!