sábado, 24 de dezembro de 2016

POLICIÁRIO 1325




UM CONTO EM NOITE DE NATAL


Porque é Natal, o Policiário retoma uma das suas apostas dos primeiros anos, em que o Conto de Natal era uma instituição com lugar garantido na secção com data mais aproximada de 25 de Dezembro.
Nessa altura, a figura do Provedor do Policiário era uma realidade e durante muitos anos foi assegurada pelo confrade Lima Rodrigues, antigo editor livreiro, escritor e, sobretudo, um contista de grande mérito. Em todos os natais, era regra a publicação de um conto temático, de sua autoria.

Muitos anos passados, numa altura em que nos aproximamos a passos largos da comemoração dos 25 anos deste nosso espaço, que ocorrerá no dia 1 de Julho do próximo ano, recuperamos a publicação de um conto de temática natalícia, mas que não segue, nem tem de seguir, as “regras habituais” de transmitir o chamado espírito da época, nem tão pouco ter um final feliz e quase moralista.
Boa leitura…


 ÚLTIMO NATAL
Um conto de Luís Pessoa


Solitário, mergulhava na internet sem outra actividade ou ocupação, para além da escola, onde era sistematicamente marginalizado e apelidado de bronco ou mesmo de “gay”. Não se podia falar de maus-tratos físicos ou de violência gratuita, a que modernamente se dá um nome esquisito e estrangeiro, mas a sua relação com os colegas não era grande coisa.
Os pais, maioritariamente ausentes, irmãos inexistentes, a avó de idade avançada, a caminho de um lar, faziam dele um solitário, talvez daqueles que, repentinamente, pegam em armas e fazem o inimaginável, atentados, mortos e feridos com fartura, páginas e páginas de jornais e aberturas em noticiários televisivos…

Passava diariamente à porta do lar onde fora depositada a avó e o barulho ensurdecedor do silêncio que por ali se fazia sentir, chamava-lhe a atenção. Para ele, o silêncio era uma das melhores sensações a que podia aspirar.

Um certo dia, entrou.

Maravilhou-se com as ausências. De afecto, de carinho, de expressão, de sons…

Começou a ir mais vezes. Porque aquele silêncio lhe era agradável e porque, pouco a pouco se conseguia inserir naquela comunidade, feita de olhares fugidios, monossílabos interiorizados, sinais de códigos indecifráveis. Estava muito perto do seu mundo.

Dias mais tarde, havia sorrisos. Da avó e das pessoas que estavam à sua volta. Sorrisos por nada. Quase todas sofriam de doenças degenerativas e as recordações praticamente não existiam. Estavam sós, completamente sós, porque apenas “quem recorda nunca está só”, como referia na sua sapiência um pensador de Almeirim, homem sábio de muitos saberes, Manuel Constantino, de seu nome.
Sorriu, quase por instinto, porque Manuel Constantino, homem destes pensares, era o mesmo que “liquidava” às dezenas nos seus escritos, policiais, pois então.

Decidiu cortar com as visitas. Começara a temer os afectos, as familiaridades, os olhares, os gestos. Estava a ir longe de mais, sentia-o. E decidiu parar, precisamente na véspera de Natal, quando das paredes escorriam fitas douradas e luzes de muitas cores, dando ideia de uma alegria que estava bem longe dali.
Nessa última visita vestiu um fato velho, de um vermelho vivo e um carapuço da mesma cor, com ornamentos brancos, que em tempos vestia o seu pai quando simulava a descida pela chaminé, com um saco às costas, carregado de brinquedos, tantos que muitas vezes nem chegavam a cumprir a sua missão fora das caixas. E no outro lado da sala estavam os outros brinquedos, os do seu aniversário, porque ele era, como dizia muitas vezes a mãe, o Menino Jesus dela!
E era novamente abandonado na brincadeira de criança só, que não sabia brincar.

Sorriu ao pensar no que estava a fazer, a praticar a arte do fingimento, fazendo-se passar por essa personagem que detestava, o tal Pai Natal que uma marca de refrigerantes promoveu até à saciedade, arrastando para a lama toda a magia da época.
Mas pronto, era o final das visitas, o seu “público” parecia gostar e manifestava-o com sorrisos de orelha a orelha, que duraram até à sua fuga, campos fora, com um aperto no estômago e náuseas vigorosas.
Correu, correu e correu até sentir as pernas fraquejarem e o peito apertar-se em respiração ofegante…

Regressou ao recato da sua internet, onde o silêncio era possível e as memórias descartáveis a cada mentira.

No mesmo dia em que completou 18 anos, saiu de casa pela manhã, brilhando no seu traje, sorriso nos lábios, com o sol a espreitar por entre o nevoeiro semi-cerrado. Tomou o caminho do lar, onde a sua falta quase se fizera sentir, porque só o grupo de idosos o poderia recordar, mas as doenças não permitiam.
Ficou só, no seu canto, tal como cada um dos velhos. Cada qual no seu casulo, com os seus sinais e sorrisos.

O seu corpo, vestido de Pai Natal, foi recuperado na vala nesse mesmo dia, ao entardecer e ao funeral ninguém compareceu.

Certamente por esquecimento.


FELIZ NATAL


Este ano, como o dia de Natal ocorre a um domingo e não há edição do PÚBLICO, a nossa secção foi antecipada para o dia de hoje, por deferência da nova direcção do jornal.
A mesma situação vai ocorrer na próxima semana em que o Policiário vai estar presente na edição do dia 31 de Dezembro, último dia do ano, algumas horas antes de iniciarmos uma “maratona” pela noite fora, no blogue Crime Público, sendo divulgados “ao vivo” todos os resultados e vencedores.

Nesta véspera de Natal, apenas algumas horas antes da noite “mágica” de Natal desejamos a todos os leitores e “detectives” umas Boas Festas, com tudo o que mais desejarem, incluindo os êxitos policiários.




1 comentário:

Anónimo disse...

Conto muito bom que me emocionou. Excelente.
Bom Natal para todos
Deco