CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL - 2017
PROVA
N.º 10 (ÚLTIMA) – PARTE I
“O ÚLTIMO BEIJO?”
– Original de M CONSTANTINO
Noite
gélida e ventosa – que o crime desconhece meteorologia. O alarme deu-se às
22.34 minutos. Dezassete minutos após, o piquete estava junto aos carros
patrulha. Dum deles saiu o médico legista – caso raro de perfeita coordenação!
O agente apontou o 1º andar. “Luz & Luz”, comerciantes, propriedade do
irmão mais novo, Lúcio, do filho Dário e de Pedro, filho do falecido luz.
Lúcio, vítima recente de atropelamento e fuga, considerada tentativa de
homicídio, dependia de uma bengala de carvalho argolada. Prejuízos e roubos na
firma abreviavam o regresso à gerência. Constam sérias zangas com Dário,
acusado de “não ser seu filho”, “falta de visão negocial”, “só é bom na raquete
e com as duas mãos”, factos que favoreciam o sobrinho!
À
porta fechada do 1º andar, um outro agente aguardava. Pedro, que dera o alarme,
interrompeu o passei nervoso, abafado pelo comprido cachecol, bradou: “Estão
mortos! Mataram-se um ao outro e...” Interrompi. Pedi ao agente que o levasse
para outra sala. Trocadas luvas pelas de látex, entrei seguido do legista e do
meu parceiro Rui. Dois homens jaziam estendidos no soalho. Lúcio, de costas,
fora atingido em pleno peito com metade de uma tesoura de cerca de 25
centímetros. O sangue escuro coagulara na camisa e numa mancha no chão. Na
lividez da face direita sobressaía o batom vermelho de uns lábios: um último
beijo? Dário, de bruços, na frente, braços estendidos, mão direita enluvada,
uma ferida na testa. Entre ambos, com a ponta de apoio perto da mão de Lúcio, a
pesada bengala. Tirámos fotos, enquanto o legista cortava a camisa e expunha a
ferida. Depois de extrair a arma, declarou com competência: “Espuma e sangue
nos cantos da oca, a lâmina resvalou entre as costelas, de certeza perfurou o
coração – fatal!” Aproximou-se de Dário e gritou: “Uma ambulância! Urgente ou
perdemo-lo!” Dia de milagres, dir-se-ia. Ao removerem o ferido caiu-lhe da mão
esquerda um molho de chaves, entre as quais a da porta, unidas por uma chave de
prata onde se lia “Dário S. Luz, Doador universal”. Cliché mental: Lúcio,
também ele doador, “um dos puros”, fazia notar que na raça branca o seu tipo de
sangue é apenas de 5%, convenceu Dário a ser um deles. Aí este conheceu a
namorada, Ema, agora noiva, ou melhor ex-noiva da vítima viúvo, elegante, rico.
Razão das zangas? Provável. Debrucei-me sobre o morto. Notei que a marca do
beijo estava ao contrário, isto é, como se fosse beijado de cima para baixo,
facto que contraria a lógica. Dos bolsos retirei uma ponta de uma folha de
contas, que deduzi fora arrancada à força, mas não encontrei a parte restante.
Fixei o armário junto à entrada, de portas sólidas escancaradas e o conteúdo
empilhado no chão: folhas de clientes numeradas, com algumas faltas. Rui
informou que os móveis, secretária, telefone estavam limpos de digitais e não
sabia como foram limpos, pois as toalhas e panos de limpeza não tinham
vestígios de uso. O computador fora violado. Sugeri à directoria o envio de
peritos informáticos e de contabilidade. A bengala e a arma seguiram para o
laboratório. Subitamente a janela da esquerda abriu-se. Fui fechá-la, mas
estaquei: um pingo de sangue oblongo, recente, jazia entre o corpo e a janela,
distante de ambos, vinha desafiar-me o raciocínio. Indiquei-o a Rui para
assinalar e enviar para análise. Fechei a janela depois de olhar a viela
ventosa. A sala voltou à amena temperatura anterior. O corpo foi enviado para
autópsia. Selei a porta e fui ao encontro de Pedro que tremia. O meu parceiro
voltou: com a lanterna A.L.S. de raios ultravioletas, percorreu o corpo do
rapaz, concluindo: “sem vestígios incriminatórios”. Lembrei-me para providenciar
as buscas na roupa de Dário e voltei-me para Pedro. Relatou que o tio marcara
uma reunião para as 22h mas, por dificuldades de estacionamento chegou minutos
depois das 22.30h. Viu os sócios caídos, depreendendo imediatamente que se
agrediram e mataram um ao outro. Não perdeu tempo, ligou ao 112 e correu para
baixo. “Não, não mexi em nada” … “o polícia nem chegou a entrar, da porta
telefonou logo” … “sim, ele e o primo utilizavam o computador”. Rui levou o
rapaz para o carro a fim de passar o depoimento a escrito. O polícia que havia
confirmado a sua condução no caso, falou com o colega e comunicou-me que no
decorrer da ronda haviam visto o carro de D. Ema parado à porta aberta do
prédio do escritório, sinalizado mas sem ninguém dentro. Eram 21,45h. Eis um
elo de ligação muito a propósito. Voltámos à PJ e solicitei a Rui para convocar
Ema, para depoimento. Abri o computador. Liguei ao Hospital cerca das 3.30h,
chefe da equipa médica de serviço, elucidou-me: “Fractura sem lesão do cérebro,
ruptura de uma veia temporal, com derrame – teve sorte, o osso frontal diminuiu
o impacto. Nada de interrogatórios, não se lembra de nada … facto que pode ser
físico ou psíquico… Há que aguardar...” Voltei ao computador.
Acordei
estremunhado com o telefone… “porra adormecera!” Era o legista: “Certo o
diagnóstico adiantado. Hora da morte 21.30/22.30. Segue relatório.” Olhei o
relógio: 10.35h. Em cima da mesa, um copo de café frio, dois jornais do dia
abordavam o caso; “Crime Passional?” “Parricídio?”. Um bilhete de Rui: “Sonhos
coloridos”; vou buscar a dama para depoimento. Fui a casa retemperar-me com um
banho e café. Pus hipóteses, eliminei conjecturas. Precisava de verificar algo
para justificar outro algo! Aproveitei o regresso ao serviço para passar na
viela junto aos escritório dos Luz. Percorri-a, o vento deixara bocados de
papel de jornal, mas nada de interesse.
Na
PJ, sobre a secretária encontrei um fax do laboratório: “exame da gota de
sangue com o da arma/esta sem impressões digitais/são exclusivamente da vítima
as da bengala em cujo extremo anterior da argola detectamos um pouco de pele do
frontal, no interior e início da curvatura da bengala revelou quatro cabelos de
0,5 cm/ confirmamos em relatório próprio”; um memorando de serviço de Rui:
“pesquisas vestes de Dário e Ema, negativos; junto depoimento desta última”. Do
depoimento extraí: “esperava por Lúcio à saída do trabalho e foram jantar após
o que ele dormitara numa poltrona enquanto refazia a maquilhagem, depois
levou-o ao escritório. Não saiu do carro, lembra-se de se ter escondido debaixo
do volante quando uns faróis nos máximos se aproximaram devagar. Às 22h estava
na associação de voluntários.”
Voltara
à estaca zero. Ou não? Esperem, os acontecimentos começaram a desenhar-se.
Quando
o director me convocou para uma conferência às 15.30h, tinha “o dedo no gatilho
para disparar certeiro” com argumentos justificativos.
E
vós, leitores?
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