domingo, 16 de setembro de 2018

POLICIÁRIO 1415




ESTÁ DECIFRADO O CRIME IMPOSSÍVEL

Vamos hoje ficar a conhecer como o Inspector João Velhote decifrou um crime que parecia impossível e que o confrade Rigor Mortis, autor do desafio, nos apresenta, numa altura em que a competição entra na sua fase mais decisiva, no que toca à definição dos lugares mais cimeiros do campeonato.

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL – 2018
SOLUÇÃO DA PROVA N.º 7 – PARTE I
“CRIME IMPOSSÍVEL” – ORIGINAL DE RIGOR MORTIS

O inspector João Velhote já tinha de facto uma ideia bastante pormenorizada do que acontecera na véspera, precisamente por causa das contradições entre os factos apurados:
·         Tiro ouvido às 20h, numa altura em que apenas o António poderia estar ao pé do José Rodrigues…
·         Hora da morte, segundo a estimativa do médico-legista, entre as 14 e as 18h, período em que os 5 habitantes da casa estavam manifestamente juntos, conversando no jardim da casa senhorial…
·         Pistola com sinais de ter disparado recentemente, mas guardada na sua caixa… Silenciador, no entanto, cuidadosamente limpo…
“Estes ambientes rurais…”, pensou João Velhote. “Filho ilegítimo catrapiscando a meia-irmã, sem disso saber… Um empregado apaixonado pela patroa… Patroa não correspondendo a esse amor, mas mantendo o empregado… Um noivo a andar atrás de garotas, mas ameaçando o homem que lhe disputava a noiva… Pistolas do tempo da guerra colonial usadas em tiro ao alvo…”
Dos dois suspeitos que tinha – o Rafael e o António – apenas um reunia as condições necessárias para ter cometido o crime, o Rafael.
Se o António o tivesse feito, porquê revelar tão abertamente que tinha ido visitar a vítima, e porquê contribuir para “definir” o momento da morte, às 20h? E se a morte ocorrera de facto a essa hora, ter-se-ia o médico-legista enganado grosseiramente, ao estimar a hora da morte entre as 14 e as 18h? O António não devia saber onde estava guardada a caixa da pistola que era do marido da D. Amélia, mas mesmo que o soubesse, porquê recolocá-la no sítio onde era normalmente guardada? Porquê não usar o silenciador? Porquê não limpar todos os sinais de que a arma tinha sido usada? E decerto que não conhecia a verdadeira paternidade do José Rodrigues, ou teria usado esse argumento para o afastar da Rebeca.
Mas se o assassino tivesse sido o Rafael, que mostrava ser um homem inteligente e sensível, apesar da sua baixa posição na hierarquia daquela casa senhorial, as peças do puzzle podiam encaixar-se perfeitamente, com a imaginação adequada…
Rafael sabia dos “avanços” do José em relação à sua meia-irmã, reprovando-os por razões óbvias. Mas também não gostava especialmente do António, e sabia que D. Amélia partilhava dessa desconfiança. No seu entender, Rebeca merecia algo melhor… A lealdade para a família e o amor que tinha pela D. Amélia tê-lo-ão levado a conceber um plano para eliminar o José, incriminando o António. De uma cacetada, dois coelhos…
Aproveitando a ausência do António, quando foi buscar o café minutos antes das 20h, pôs as luvas de cozinha e saiu rapidamente pela porta de trás, levando a pistola consigo. À entrada do bosque disparou um tiro para o ar e voltou rapidamente para servir o café – no total não terá levado mais do que dois ou três minutos. Quando todos se tinham deitado, pegou novamente na pistola com as luvas de cozinha, pôs-lhe o silenciador e foi a casa do José Rodrigues, matando-o com um tiro na cabeça. Fazendo uso da sua força física trouxe o corpo consigo até à casa senhorial, depositando-o na casota de sauna. Depois limpou cuidadosamente o silenciador, mas não a pistola, e arrumou tudo na caixa, que guardou no lugar habitual. Algumas horas depois, talvez pelas 5h da manhã, pegou novamente no corpo e levou-o até ao ribeiro, onde o depositou meio dentro de água, procurando deixá-lo na mesma posição em que o tinha colocado na casota de sauna.
As seis ou sete horas que o cadáver esteve na casota de sauna, a uma temperatura bem mais alta do que a do corpo humano, atrasaram substancialmente a descida de temperatura do corpo mas aceleraram o estabelecimento da rigidez cadavérica. Ao colocá-lo no ribeiro, de água bem fria, ocorreu o oposto – aceleração da descida da temperatura do cadáver e abrandamento do desaparecimento da rigidez cadavérica. Com alguma sorte, a hora da morte acabaria por ser estimada à volta das 20h… Mas mesmo que assim não fosse, as acções opostas a que o cadáver tinha sido submetido baralhariam os dados, tornando-os menos precisos e fiáveis. Um ano de estudos de medicina terão sido bem úteis…
Para consolidar as suas ideias, o inspector João Velhote iria:
·         Fazer um teste de balística, para se certificar de que a velha pistola tinha de facto sido utilizada para matar o José Rodrigues.
·         Proceder à análise de impressões digitais na pistola, onde esperava encontrar as do António e as do Rafael, aí colocadas na sessão de tiro ao alvo alguns dias antes, mas também algumas manchas provenientes do seu manuseamento pelo Rafael com as luvas de cozinha.
·         Mandar analisar cuidadosamente a casota de sauna, onde esperava encontrar vestígios da presença do cadáver na noite anterior.
·         Da mesma forma, iria mandar analisar as roupas do Rafael, procurando vestígios idênticos.
Se tudo corresse como esperava, o inspector poderia fechar o dossier em poucos dias, resolvendo mais um complexo caso de homicídio…


4 comentários:

Eduardo Oliveira disse...

Bom dia
Este problema tinha várias afirmações e dados que teriam de ser falsos, e conforme o que se assumisse que fosse falso ou verdadeiro, assim a solução iria mais para um lado para o outro.
A solução do autor naturalmente é soberana, porque o problema é dele, mas entre outros pormenores há um cuja solução não me parece encaixar bem no problema. Aí é indicado:
"– Foi um tiro, mãe. Por estas alturas andam sempre aí à caça. Foi para os lados do ribeiro.
Rafael apareceu logo a seguir com o café e biscoitos, e a conversa ficou por aí."
Não há motivos para desconfiar que esta parte seja verdadeira, é bastante factual.
No entanto na minha opinião a solução apresentada distorce estes factos quando diz:
"saiu rapidamente pela porta de trás, levando a pistola consigo. À entrada do bosque disparou um tiro para o ar e voltou rapidamente para servir o café – no total não terá levado mais do que dois ou três minutos"
Ora das duas uma: ou foi dar o tiro longe, e não poderia ter aparecido logo a seguir com o café e biscoitos, 2 a 3 minutos não me parece que seja "logo a seguir". Ou então o tiro foi logo ali perto, e então claramente em casa se teria percebido que o tiro tinha sido perto da casa e não perto do ribeiro, que como sabíamos ficava a 8 min em passo rápido.
Parece-me que estas situações não se enquadram bem entre o problema e a solução, e assumindo como o fiz que Rafael não poderia ter dado o tiro das 20h, pois o tiro foi longe, perto do ribeiro (a 8 min), e ele apareceu logo a seguir com o café e os biscoitos, a solução teria naturalmente de indicar para outras direções...
Enfim, é só a minha opinião, vale o que vale...
Eduardo Oliveira (EGO)

Unknown disse...

Concordo plenamente com o colega. Essa foi também a razão pela qual não considerei possível ser o Rafael a disparar o tiro das 20 h. Fantasma

Paulo Rita aka Xispetêó disse...

Bom dia

Alem do apresentado pelo EGO com o qual concordo, existe outro aspeto com o qual não posso concordar: A hora a que o homicidio se terá dado (após as 21h30 segundo as soluções)

Nas soluções são apresentados dois métodos de determinação da hora aproximada da morte: o algor mortis (descida gradual da temperatura corporal do cadáver até atingir a temperatura ambiente) e a rigidez cadavérica (sinal reconhecível de morte que é causado por uma mudança bioquímica nos músculos, causando um endurecimento dos músculos do cadáver e impossibilidade de mexê-los ou manipulá-los).

A primeira é muito utilizada fora do laboratório para a determinação da hora provável da morte através da avaliação da temperatura interna do corpo (habitualmente temperatura rectal). Esta temperatura pode ser aplicada no Nomograma de Hennsge utilizando ainda variantes como a temperatura exterior, a circulação de ar, a fisionomia, vestuário e imersão ou não do corpo. Partindo do pressuposto que o medico legista teve em conta que o corpo estava meio imerso no ribeiro em água bem fria ele já teve em conta estes pressupostos.

Segundo a solução o homicidio terá ocorrido após as 21h30 hora que todos estavam deitados. Colocado na sauna (habitualmente com temperaturas que rondam os 60 a 80ºC) o que atrasou ou aumentou mesmo a temperatura corporal do cadáver. Partindo do principio que o cadáver tinha a mesmo temperatura corporal ás 5 da manha que tinha quando foi morto (imaginemos 37,4ºC) o decrescimo da temperatura começaria a partir daí pelo que o médico legista determinaria a hora da morte cerca das 5h00 pelos dados que tinha no momento e nunca para antes da hora a que cessaram as funções vitais do José.
O mesmo aconteceria inversamente com a rigidez cadavérica (método mais grosseiro para determinação da hora da morte mas que também pode ser utilizado). A temperatura da sauna aumentaria a rigidez e começaria a diminuir na presença da agua fria mas nunca de forma que fosse atrasar a hora real da morte.
Assim, e a meu ver, com a colocação do corpo na sauna por umas horas a hora da estimativa do medico legista deveria ser posterior há hora da cessação das funções vitais do José e não o contrário como aponta a solução.

Em relação á frase "As seis ou sete horas que o cadáver esteve na casota de sauna, a uma temperatura bem mais alta do que a do corpo humano, atrasaram substancialmente a descida de temperatura do corpo mas aceleraram o estabelecimento da rigidez cadavérica. Ao colocá-lo no ribeiro, de água bem fria, ocorreu o oposto – aceleração da descida da temperatura do cadáver e abrandamento do desaparecimento da rigidez cadavérica." apresentada na solução, segundo este trabalho cientifico a velocidade do arrefecimento não iria aumentar mas sim seria igual ao determinado pelo Nomograma de Hennsge "Newton’s Law of Cooling states that the larger the temperature difference between an object and its surrounding, the quicker it will cool. However, it has been well accepted that this pattern should not be adapted for cadavers with Rainy (1868) first recording that cadaveric cooling did not occur in this fashion. "

Por ultimo também não me parece que alguém que frequentasse o primeiro ano de medicina ficasse com suficientes conhecimentos de medicina forense que lhe permitisse arquitetar um plano destes. Se ele fosse um dos confrades concorrentes do publico policiario ai sim, já acreditava :)

Por ultimo faço minhas as palavras do confrade EGO "Enfim, é só a minha opinião, vale o que vale..."

Gostaria ainda de aproveitar para deixar a todos os confrades um convite para visitarem a recém formada Tertúlia Policiária Facebookiana que pretende ser um local mais do que de divulgação, de discussão e troca de opiniões sobre este tema de uma forma rápida e simples apesar de virtual. https://www.facebook.com/groups/542372459561095/about/

Bem hajam
Saudações policiárias

Paulo Rita aka Xispetêó

Paulo Rita aka Xispetêó disse...

Por lapso ficou por enviar o link do artigo sobre a algor mortis "https://www.sciencedirect.com/topics/medicine-and-dentistry/algor-mortis"

Paulo Rita aka Xispetêó