(Problema 58)
Publicado na secção POLICIÁRIO em: 06.Dezembro.1992
UM CASO A RECORDAR
Prova n.º 6 – Torneio preparação
PÚBLICO Policiário
Um original de M. Constantino (Almeirim)
Há
quem afirme, convicto, que as histórias se contam em qualquer altura; os casos
verídicos relatam-se quando acontecem. No primeiro caso é a investigação que
surge em qualquer momento, no segundo a realidade presente. Sem discutir a
coerência do exposto, ninguém duvide da veracidade do presente relato:
respeitem-se as recordações… Quem recorda nunca está só.
Comecei
pelos problemas ou enigmas policiários, acabei como elemento da Judiciária,
após um curso universitário e a passagem pela vida militar. Não me estava a
sair nada mal. A prática objectiva e consciente, o entusiasmo e a intuição
postos nos casos que me saíam – como se de um problema policial ficcionado se
tratasse – acabaram por chamar a atenção dos superiores, determinando promoções
e respeito. Em todas as circunstâncias, dar o melhor é um lema que sempre
resulta: nem que seja para satisfação própria.
Naquele tempo,
inícios do ano de 1947, algures para os lados de Sesimbra, o local pouco
importa, uma moradia isolada, bem tratada… Quando chegámos, a GNR fazia guarda.
Ninguém se aproximara, o que se justificava, aliás, pela localização.
O espectáculo
que se me deparou não era bonito, não senhor. O corpo era algo horrível de se
observar: de costas, a pele extremamente pálida, um branco pálido pouco comum,
mãos abertas, de dedos em leque, a parte superior do rosto, do nariz para cima,
parte da cabeça e cabelos, era carne dilacerada à mistura com sangue e o escuro
da pólvora; depois, dentes níveos, cerrados num rictos dir-se-ia diabólico,
lábios afastados e franzidos, como se um sorriso de morte os aflorasse… Uma
camisa um pouco larga, com monograma H.H., calças vulgares, o pé direito
descalço, o dedo mínimo ligeiramente arranhado. O sapato parecia ter sido
atirado descuidadamente para junto da varanda. Aos pés da vítima uma espingarda
de cano único, calibre 12, de cuja câmara extraí e voltei a colocar um cartucho
recentemente detonado, sem que os meus dedos deixassem ou apagassem qualquer
indício e sem alterar igualmente a posição da arma.
O cesto junto
da secretária continha papéis rasgados, contas sem importância para o caso,
restos de cartas sem interesse, duas cartas meio rasgadas que a paciência me
ajudou a reconstituir, assinadas por “Monte”, nas quais se exigia elevadas
quantias que coincidiam com os talões dos cheques de uma caderneta encontrada
no cofre aberto, constatando-se, por consulta ao banco, que haviam sido
levantados sem possibilidade de identificação do detentor, já que o gerente
contactara telefonicamente o depositante que, prontamente, confirmara a ordem
de pagamento.
Descobri,
caída debaixo da secretária, uma folha solta de passaporte; ainda que mutilada,
continha a fotografia, nome e naturalidade de Hans Hentschel, tendo-me sendo
impossível descortinar em qualquer parte o resto deste importante documento.
O cofre
continha vários documentos sem valor, moedas e notas várias de pouca
importância, um envelope de grande formato contendo a foto de um oficial alemão
(a vítima) ostentando diversas condecorações e datado de 1942.
Ninguém
presenciara directamente a tragédia. Os dados mais consistentes foram
fornecidos pelo antigo proprietário da moradia, o senhor Joaquim Mata, cujo
depoimento encerra uma estranha história. Disse que por volta de 1944, sem
dinheiro e sem família e com idade a pedir descanso, vendera a propriedade, por
intermédio de um procurador, ao senhor Hentschel, ficando a habitar um pavilhão
do jardim, que mobilara para esse fim, conforme escritura lavrada no notário. O
novo proprietário era um indivíduo pouco sociável, nunca saía e raras vezes lhe
falara, se bem que falasse português com facilidade. Um criado, também alemão,
fazia todo o serviço caseiro, bem como as compras necessárias no exterior. Este
faleceu em Outubro do ano anterior e, ele, Mata, cegara pouco depois. A sua
cegueira era irreparável e aguardada conforme informação médica anterior. Os
primeiros tempos foram horríveis de suportar, sem um só gesto de ajuda do
vizinho.
Valeu-lhe
posteriormente a solicitude do novo criado, Armando Ricardo, um homem acessível
que a justiça atirara para a prisão durante quinze anos e que aceitara o
emprego poucos dias após a libertação, exactamente pelo isolamento do local.
Não se mostrava receptível ao contacto público. O patrão proibira-o
terminantemente de lhe falar logo ao segundo dia da sua chegada e vigiava o
cumprimento dessa proibição, pressentia ele. Nada mais sabia da sua vida,
embora Armando encontrasse maneira de lhe deixar à porta o indispensável ao
sustento que, em regra, pedia telefonicamente.
Hentschel mostrava-se cada dia mais rabugento,
verdadeiramente intratável. Ouvia-o passear no jardim dia e noite, atirando
pontapés a tudo o que se lhe deparasse no caminho, entregue ao terrível vício
de mascar tabaco continuamente. Tratava o novo criado por “Ich” e seguia-o com
sonoras gargalhadas.
Resmungava vinganças, em voz surda, para si próprio, falava em “Monte”, ou
“Morte”, em “chantagem”, ria como um louco, dizia-se “diante de um espelho”,
repetia a frase e ria, ria muito. Chegara a temê-lo, principalmente quando se
punha a gritar em “estrangeiro”!
Naquele dia
ouvira-o chamar por Armando repetidamente. Não sabia se o encontrara, mas a
meio do dia ouvira um tiro abafado. Tudo estava num silêncio profundo. Receando
qualquer anormalidade ou por uma espécie de pressentimento, dirigira-se,
tacteando, à casa. Não obtivera resposta aos seus chamamentos de quem quer que
fosse. O silêncio assustara-o, voltara para o pavilhão e telefonara. E
terminara:
- Oh! Armando
deve ter abalado ontem à noite, farto desta vida, com toda a certeza! Ainda bem
que o fez porque, apesar de não o conhecer bem, pressentia que era um homem bom
que pagara à sociedade o seu crime, fosse ele qual fosse.
Hentschel era
um tirano.
É tudo.
Mesmo antes de
obter a confirmação de que as impressões digitais encontradas na arma bem
oleada eram exclusivamente da vítima – arma, aliás, averbada em seu nome – tudo
indicava que fora disparada com o dedo mínimo do pé descalço; que os pingos de
sangue encontrados nos sapatos eram igualmente da vítima, bem como todas as
impressões digitais detectadas no cofre. Antes de confirmar tudo isso, eu tinha
formado uma teoria que reduzi a relatório e, afinal, se mostrara correcta.
O problema que
se punha era de vastas hipóteses: admitir o suicídio como tudo indicava; o
homicídio perpetrado pelo desaparecido Armando, farto do alemão ou por roubo;
assalto por pessoa ou pessoas desconhecidas ou pelo chantagista, nos dois
últimos casos disfarçando o crime, etc…
Qual a opinião
dos meus queridos amigos e leitores, e porquê?
Pensando bem, excluindo todo o
raciocínio e encaixe dos vários detalhes, se a polícia tivesse em princípio
procedido a uma elementar operação técnica, teria solucionado todo o trama.
Qual era essa operação?
E nesse dia, o
Luís Pessoa esclarecia:
Devido à grande extensão do problema de
hoje, de autoria de um dos “monstros sagrados” do policiário e um dos mais
completos e exímios produtores, não dispomos de espaço para outros assuntos.
Mas “nós”, folheámos
a colecção e encontrámos…
Solução
do problema
UM CASO A RECORDAR
Apresentada pelo autor: M. Constantino
Publicada
em: 27.Dezembro.1992
Os primeiros
factos que chamaram a minha atenção, foram:
1 – a) O tiro
no rosto como a disfarçar a identidade;
b) Os pingos
de sangue nos dois sapatos;
c) Os dentes
níveos;
d) A pele
excessivamente pálida;
e) A chamada
ao criado de “Ich”;
f) Ver-se
“diante de um espelho”.
Decidira desde
logo que o morto não era o alemão. Ninguém que masque tabaco tem os dentes
níveos. A partir daqui deduzi que o morto era Armando, um homem saído da prisão
há poucos dias (razão da palidez), que para seu azar era tão parecido com o
alemão que este lhe chamava “Ich” (eu) e se julgava perante um espelho.
Depois, ambos
os sapatos tinham pingos de sangue – mas ninguém se descalça depois de morto e
verificamos que um sapato foi atirado para junto da varanda, fora do alcance de
qualquer salpico.
As impressões
digitais deixadas na arma bem oleada e no cofre e não quaisquer outras, bem
como o desaparecimento das folhas do passaporte onde eventualmente estaria uma
impressão digital identificadora, dão-nos a certeza da premeditação do crime,
quiçá para fugir a um chantagista incómodo (lembremos que o alemão era um
oficial, muito possivelmente com culpas no cartório).
2 – A resposta
à segunda questão é simples. Se a polícia tivesse desde o início tirado as
impressões digitais do morto e procurasse identificá-las com os arquivos existentes,
verificaria desde logo que o morto era o criado. O resto viria por
arrastamento.
Creio que é o
bastante, embora o problema dê “pano para mangas”.
M. Constantino
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