domingo, 24 de agosto de 2014

POLICIÁRIO 1203

[Transcrição da secção n.º 1203 publicada 
hoje no jornal PÚBLICO]


O POLICIÁRIO EM TEMPO DE FÉRIAS: ÉVORA 2012

Em Março de 2012, no dia 29, o Inspector Fidalgo deslocou-se à Universidade de Évora para proferir uma breve palestra, a convite do Departamento de Química.
Da sua intervenção, destaque para algumas considerações, que vamos aqui relembrar, aproveitando a actual “calmaria” devida às férias…

A QUÍMICA DO CRIME…


“Reconheçamos que faz todo o sentido que seja a Química a reivindicar cada vez mais o papel principal no combate ao crime, tal é o desenvolvimento actual da ciência e da técnica na resolução dos casos criminais. O CSI é hoje uma realidade transmitida e ampliada por séries televisivas atractivas e muito dinâmicas, ainda que nem sempre retratem a realidade.
Mas, se a Química é hoje uma componente fundamental para a resolução dos crimes, também não faz mais do que a sua obrigação, porque uma imensa maioria dos crimes cometidos, ditos de sangue (assassínios, agressões, violações, etc.), têm também a sua origem na própria Química (…)
É a “Química” das pessoas, as reacções pessoais que conduzem à grande maioria desses crimes, digamos, circunstanciais, não planeados. Uma palavra dita no momento errado, excessiva, pode despoletar uma reacção fortíssima, desproporcionada, que conduza ao cometimento de um crime. É o vulgar “perdeu a cabeça”… “passou-se”!
Portanto, digamos que uma certa “Química” é causa principal de actos que uma outra “Química” vai resolver… Quase “em família”!

O POLICIÁRIO

O termo Policiário foi desenvolvido pelo Sete de Espadas, a partir da designação que foi dada por Fernando Pessoa que em carta escrita ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro referia que estava a trabalhar numa novela policiária, supostamente “O Roubo na Quinta das Vinhas”. Esta carta, de 13 de Fevereiro de 1935, foi o ponto de partida para a designação do nosso passatempo.

É bom que fiquemos já cientes que o crime que mais nos interessa não é o que referimos atrás, como circunstancial, como reactivo, como “Químico”, mas sim aquele que é planeado, estruturado por um cérebro o mais brilhante que for possível.

Também é bom que percebamos que a nossa actividade é levada muito a sério por todos nós, ou seja, mesmo tratando-se da decifração de enigmas ficcionados, de forma lúdica, essa decifração obedece a todas as regras de uma investigação real.

Finalmente, nem tudo se passa em redor do crime. É possível e muitas vezes acontece, haver desafios onde a actividade criminal não está presente, por exemplo, pedir-se aos detectives que descubram qual foi a criança que comeu um bolo que não era suposto ser comido, ou qual dos empregados cometeu um erro numa encomenda, ou qual foi o aluno que pregou uma partida a um professor, etc.

FERNANDO PESSOA, SEMPRE ELE…

Reparem só num pequeno extracto da novela de Fernando Pessoa, já referida, “O Roubo na Quinta das Vinhas”, para termos uma ideia daquilo que a ferramenta Policiário nos pode “ensinar” para a vida:
Diz o Dr. Abílio Quaresma, o investigador de Pessoa, a dado momento:

“Um exemplo: passo por uma rua e vejo um homem caído no passeio. Instintivamente me pergunto: porque é que este homem caiu aqui?
Já aqui vai um erro de raciocínio e, portanto, uma possibilidade de erro de facto. Eu não vi o homem cair ali. Vi-o já caído. Não é, portanto, um facto para mim que o homem caísse ali. O que é um facto para mim é que ele está caído ali (…) Creio ter-lhes mostrado bem como é complicado o que parece tão singelo. É preciso, em qualquer problema, separar cuidadosamente, logo no princípio, os dados e as conclusões…”.

Mais claro, não podia ser…
O Policiário coloca cada participante perante as várias situações possíveis, ou seja, como vítima, como testemunha, como suspeito, como criminoso e como detective. Portanto, o criador do enigma tem que juntar todos os intervenientes, colocar cada qual no seu lugar, estudar e planear a cena onde se desenvolve a acção, deixar os indícios que conduzam à decifração, apontando a um único culpado e ilibando os restantes.

 PRODUTOR / DECIFRADOR / UTILIZADOR…

Quer isto dizer que um produtor de enigmas policiários tem que dominar toda a acção, porque não lhe é apresentado um caso, ele tem é que fazer esse caso.

Ao decifrador cabe interpretar os elementos que lhe são fornecidos e chegar a um resultado lógico.
É nesta lógica que reside, em grande parte “a ferramenta”. O policiarista confronta-se, a todo o momento, com a lógica das ilações que vai retirando dos factos que lhe são apresentados, desenvolvendo, portanto, uma cadeia lógica de raciocínio, que vai poder aplicar na sua vida.
Não é por acaso que as pessoas mais capazes de ler, interpretar, encadear logicamente os dados fornecidos, retirando as ilações necessárias, ficam muito mais apetrechados para a sua vida profissional e pessoal, conseguindo dar respostas mais rápidas e certeiras às questões e constrangimentos que surjam.
Aí, o Policiário assume-se como uma ferramenta importante.

Mas há também a vertente de prevenção. Um policiarista entende melhor as situações, ao ficar perante elas, porque aprendeu a lidar diariamente com elas, na ficção. Assim é muito melhor observador, detecta e aponta pormenores fundamentais para a posterior captura do criminoso, sabe o que é essencial que anote na sua memória visual, auditiva e sensorial. É uma testemunha muito mais confortável para um investigador.

UMA BRINCADEIRA… COM “CABEÇA”

Há histórias engraçadas, jocosas, muito falaciosas, sobre testemunhas e ilusões, como por exemplo a de um crime que é cometido e há duas testemunhas que juram que viram o criminoso. Quando chega o momento da identificação, os dois apontam um certo indivíduo, sem reservas. Já no julgamento, ambos são taxativos na identificação, mas então aparece um irmão gémeo do suspeito, igualzinho! As testemunhas hesitam, não conseguem apontar qual deles viram no local do crime…
Problema insolúvel? Nem por isso, para o juiz, que ordena a reclusão de ambos e retoma o julgamento duas semanas depois. Nessa audiência, um dos manos aparece gordo e anafado, rosado, respirando saúde, enquanto o outro está enfezado, magríssimo…
O juiz não tem dúvidas: manda libertar o gorducho…
A conclusão é simples, “o que não mata, engorda!”



(continua)

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