[Transcrição da secção n.º 1204 publicada
hoje no jornal PÚBLICO]
UMA SOLUÇÃO DAS 1002 NOITES!
Mesmo a terminar
o mês que tradicionalmente mais se associa a férias, ficamos com a solução
oficial da primeira parte da prova n.º 6, de autoria da dupla Búfalos
Associados.
CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL – 2014
SOLUÇÃO DA
PROVA N.º 6 – PARTE I
“A MILIONÉSIMA SEGUNDA NOITE”, de
BÚFALOS ASSOCIADOS
Podem sossegar os apreciadores porque ainda
não será desta que vai ser posto em
causa o final da bela
obra que é
"As mil e uma
noites". De resto, aparecerem novas histórias possíveis de nela serem incluídas, é coisa que pode sempre
acontecer. As histórias que a compõem, de origem diversa e
popular, foram sendo acrescentadas ao longo dos tempos a partir, ao que se crê, do século IX. No Ocidente passou a ser
conhecida numa tradução
para o francês
em 1704 pelo orientalista Antoine Galland, na forma hoje conhecida e mais tarde
traduzida em quase todas as línguas.
Mas tudo nos indica que o Patranhas terá inventado
os dois documentos com que esperava brilhar naquela noite em casa da Tia
Laurinda. Vejamos:
A carta do padre Dâmaso é certamente falsa.
Por dois motivos. Primeiro porque Patriarcado de Lisboa só existiu a partir de
1716. E depois porque aquela data, 10 de Outubro de 1582, nunca
existiu. Na verdade, nesse ano Portugal passou do calendário Juliano para o
Gregoriano, e dez dias foram pura e simplesmente apagados, entre 4 e 15 de
Outubro. Foi uma das consequências do Concílio de Trento, durante o papado de Gregório XIII. E o
Patranhas parece estar a mentir quando se contradiz dizendo primeiro que os
papeis estavam no meio dos livros da estante e mais tarde que os encontrou numa
gaveta. Quanto ao
outro texto poderíamos também duvidar do uso da palavra "solidéu"
num documento árabe, por ser um adereço de cabeça usado por religiosos cristãos
ou judeus, mas enfim, poderia ter sido um efeito da tradução para português. A
alternativa seria a palavra "calota". Mas como a carta é falsa, o
documento também o será naturalmente.
Passemos agora às quatro questões colocadas
pelo Rei Xahriar à inventiva Xerazade. Eis a resposta dada pela Tia Laurinda:
-"Vejamos como terão explicado as suas
decisões os três pretendentes. Após a colocação dos três solidéus retirados dos cinco, três pretos e dois
brancos, passou algum tempo, após o que Ibrahim desistiu. Certamente porque não
viu nas cabeças dos rivais na sua frente dois solidéus brancos, caso contrário teria a certeza de que o seu
era preto. Ibrahim pensou assim dar uma prova da sua inteligência,
já que não tinha mais certezas.
Passa mais algum tempo e
Abul pensa: "O Ibrahim certamente desistiu porque não via dois brancos.
Logo em nós dois que ainda não falámos, pode haver ou dois pretos, ou um branco
e um preto. E o meu pode ser o branco, mas
também pode ser preto. Como saber? Não quero falhar e o mais inteligente, com
os dados que tenho, será desistir também". O caminho ficou agora livre
para Hassan que, tendo percebido as razões das desistências anteriores, já sabe
que
o seu solidéu é de certeza preto, pois se fosse branco, o Abul teria
acertado."
Laurinda prosseguiu:-"Isto foi o que
os três terão dito no fim, reivindicando a inteligência das suas respostas, com
os dados que cada um possuía em cada ocasião. Mas o Sultão demonstrou-lhes que
podiam ter sido bastante mais inteligentes:
-"Meus jovens, a verdade é que qualquer
de vocês, rapazes inteligentes, podia ter acertado sem esperar por respostas de
outros. Bastava terem interpretado o silêncio como interpretaram as desistências. De
início era mais do que evidente para todos que não podiam estar colocados os
dois solidéus brancos, caso contrário aquele que os visse teria concluído
rapidamente que o próprio era preto, e o único preto. Não aconteceu. Que não estavam dois brancos vocês já
sabiam mas, em face do silêncio de todos, podiam
também ter percebido que nem sequer um podia estar, porque se alguém
eventualmente visse um branco apenas, sabendo já que não podia haver dois,
concluiria logo que forçosamente tinha um preto na própria
cabeça e tê-lo-ia dito. Mas o silêncio continuou. Estavam assim todos aptos a
dizer, ao fim de um certo tempo, que
o seu solidéu era preto, tal
como os dos outros, e que os dois brancos tinham ficado no saco. Estas teriam
sido a resposta
e a explicação mais inteligentes e ao alcance de todos sem necessidade de
desistências. Bastava um pouco de raciocínio próprio e confiança no dos outros.
E ninguém sabia que eu estava a ser imparcial e tinha respeitado a equidade
usando apenas os solidéus
pretos, porque se o soubessem teria sido fácil demais. A verdade é que também isso vocês teriam de
descobrir. Mas como as vossas respostas, apesar de tudo, não foram de todo
estúpidas, vou poupar-lhes a vida. Noiva é que terão de ir procurar a outro lado." - Isto era o que o Sultão podia ter dito -
continuou Laurinda - e seria a forma que eu usaria para concluir a história,
com a mesma clemência que o Rei usou para com Xerazade no conhecido final da
obra. Assim tudo acabaria sem sangue derramado."
A Tia Laurinda mais uma vez dava provas da
sua perspicácia e bom senso. -"Pois é, - disse o Patranhas - o
documento árabe nunca existiu, nem o Padre Dâmaso. E até já saiu um problema
que lembra este, mas de todo não igual, nos DESAFIOS, no PÚBLICO, em Abril de 1990. De facto
tentei enganar-vos."
E Garrett rematou: "O mais curioso em
"As mil e uma noites" é que, ao longo de mais de duas mil páginas de
ficção, não ficamos a saber quase nada sobre uma das protagonistas mais
conhecidas da história da literatura, a não ser que tinha
uma irmã que lhe pedia para contar histórias, era filha de um Vizir e tinha uma
notável arte de narrar. Em frases curtas e quase sempre iguais, entre as
histórias que vai contando, apenas nos é dito que é discreta. Mas conseguiu, com a sua habilidade,
vencer a crueldade do Rei. Acabaram por casar e ter muitos meninos. Se terão
sido felizes é que ninguém sabe. Mas que ideia tão cruel que teria sido mandar
cortar-lhe o pescoço! Felizmente que o Patranhas inventou tudo isso."
E a noite acabou com todos a
ouvir o belo poema sinfónico "Xerazade" de Rimsky-Korsakov. Vamos
fazer o mesmo?
1 comentário:
Perfeitos - problema e solução!
Um abraço
Zé
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