CONTO DE NATAL
Dentro de horas, será o momento da tradicional reunião familiar da
noite de Natal. Retomando uma outra tradição, fiquemos com o nosso Conto de
Natal, com votos de Boas Festas, na companhia de quem mais desejarem: FELIZ
NATAL.
DESAPARECIDO EM COMBATE
Um conto de Natal de Luís Pessoa
Em dois passos decididos chegou-se à janela e deitou um olhar desatento
para o que dali se vislumbrava, centrando-se, depois, na rotunda bem tratada em
que sobressaía uma sugestiva decoração de Natal.
Dali mesmo, daquela janela centrada num pequeno coté que se elevava do
telhado principal da casa, a paisagem era aberta e a luminosidade diurna
fornecia pormenores que o agente policial não estava para notar, até porque
apenas cumpria mais um frete que os de Lisboa teimavam que fizesse,
provavelmente para arquivarem mais uns tantos processos.
Do seu relatório não se iria poder inferir, nem nas entrelinhas, a
beleza da paisagem, a largueza dos horizontes, à esquerda a povoação de Santiago,
à direita o casario envelhecido da cidade antiga, ao centro as avenidas largas,
entremeadas com rotundas, umas após outras, cuidadosamente ajardinadas por mãos
hábeis e agora mais atraentes com motivos natalícios, o rio a serpentear por
entre os terrenos da antiga Quinta Agrária.
Desse relatório apenas resultaria o formulário monocórdico e já
memorizado de nada significativo haver a assinalar, de tudo ser, em suma,
normal.
Lá longe, onde alguém estaria à espera de mais dados para o preenchimento
de lacunas, viria apenas um encolher de ombros e um passar adiante, resignado,
como que a dizer que já estava à espera desse desfecho.
Em cima da mesa, o Inspector Fidalgo mantinha o dossier aberto numa
fotografia de um tipo magro e ar calmo, discreto, incapaz de chamar a atenção.
Os papéis não deixavam de referir que se tratava de um indivíduo complicado,
estranho, que estava debaixo de olho, mas não referia a razão. Suspeita de
alguém, se calhar infundada.
Apetecia-lhe escrever na capa do processo “Desaparecido em Combate”,
mas a ideia ficava por aí. Desaparecido, não se sabia se estava e haveria algum
combate em que estivesse envolvido?
Voltou a pegar no processo e releu alguns documentos, certamente à
procura de alguma coisa que lhe tivesse escapado…
Alberto Vasconcelos, 64 anos, engenheiro agrícola, natural de Viseu,
filho de um funcionário do fisco e de uma professora primária, repartindo o seu
tempo entre casa e trabalho, visitando a sua terra natal com alguma frequência,
ficando na casa que pertencera aos pais, precisamente aquela de onde o agente
espreitou descuidadamente da janela.
Há cerca de um mês, desapareceu. Ele que era o ser mais previsível à
face da terra, no dizer de todos os que o conheciam, desde vizinhos a colegas,
que amigos era coisa que ninguém lhe vira, de um momento para o outro mudou
rotinas, deixou de aparecer nos locais às horas costumeiras, enfim, desapareceu
literalmente.
Aquilo que seria apenas mais um caso de polícia, acabou por interessar
o Inspector Fidalgo, por uma razão especial, por ele mesmo ser natural de
Viseu, ter a mesma idade e não fazer a mínima ideia de quem era o Alberto
Vasconcelos, para mais sendo filho de um funcionário do fisco e de uma
professora primária, tal como ele e residir na mesma rua da cidade onde os pais
do Inspector Fidalgo ainda tinham uma casa. Mais ainda, pela descrição, as
casas seriam praticamente gémeas…
O Alberto deixou, pois, de aparecer. Não houve pedidos de resgate,
cartas de despedida, nada que pudesse indiciar que estivesse em dificuldades ou
que não tivesse ido apenas ali ao lado, tratar de algum assunto; ou que tivesse
decidido, muito simplesmente, desaparecer por conta própria. Não havia qualquer
sinal de ter cometido algum crime ou que algum crime tivesse sido cometido
sobre ele.
A sua vontade tinha sido a de se meter no automóvel e ir lá espreitar,
à sua maneira, falar com as poucas pessoas que ainda viviam naquela zona,
ameaçada de demolição em nome de um progresso cada vez mais incerto, tentar
saber coisas para alimentar a sua curiosidade, mais que para adiantar o suposto
caso que tinha entre mãos. E foi o que fez!
Estava na véspera de Natal, o dia era curto e dentro de alguns minutos
já brilhariam milhares de lâmpadas por essas árvores e jardins, numa cidade que
sempre assinalou a época.
Fidalgo estava sozinho, foi ao supermercado e comprou qualquer coisa
para cear, recordando, ainda que vagamente, as noites mágicas de Natal da
infância e juventude, com os pais e irmãos, noites especiais, ainda que
repetitivas.
Passou pelas brasas, teve sonho fugaz em que entrava o desaparecido
Alberto, mas também o Viriato que por aquelas terras terá andado e deu o nome
ao recinto octogonal com ares de fortificação e que era a razão para a
demolição de todas as casas, entre elas a da sua natividade: a Cava do Viriato.
Acordou de sobressaltado pesadelo, invadido de suores frios,
percorrendo os escassos metros até à casa de banho, cambaleante.
Abriu a torneira do lavatório e passou água pelo rosto com as mãos em
concha, erguendo a cabeça mirou-se no espelho. A cara que viu era de Alberto! O
mesmo Alberto de quem andava à procura. Agitou a cabeça, cerrou os olhos, mas a
cara permanecia a mesma e não era a sua!
Afinal, em plena noite de Natal, com ou sem magia, ele procurava-se a
si mesmo, na procura daquele que gostaria de ter sido!
Algures, alguém notou o lugar vazio na ceia de Natal e deu o alarme.
A porta foi arrombada e Fidalgo conduzido ao Hospital, de onde
transitou para uma casa de saúde, onde ainda hoje permanece, em tratamento de “distúrbios
mentais” e à espera de mais uma noite de Natal, na companhia de Alberto
Vasconcelos.
1 comentário:
Um conto estranho. As melhoras para o Inspector Fidalgo neste Natal.
Festas felizes para todos
Deco
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