segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

POLICIÁRIO 1377



CONTO DE NATAL

Dentro de horas, será o momento da tradicional reunião familiar da noite de Natal. Retomando uma outra tradição, fiquemos com o nosso Conto de Natal, com votos de Boas Festas, na companhia de quem mais desejarem: FELIZ NATAL.


DESAPARECIDO EM COMBATE
Um conto de Natal de Luís Pessoa


Em dois passos decididos chegou-se à janela e deitou um olhar desatento para o que dali se vislumbrava, centrando-se, depois, na rotunda bem tratada em que sobressaía uma sugestiva decoração de Natal.
Dali mesmo, daquela janela centrada num pequeno coté que se elevava do telhado principal da casa, a paisagem era aberta e a luminosidade diurna fornecia pormenores que o agente policial não estava para notar, até porque apenas cumpria mais um frete que os de Lisboa teimavam que fizesse, provavelmente para arquivarem mais uns tantos processos.
Do seu relatório não se iria poder inferir, nem nas entrelinhas, a beleza da paisagem, a largueza dos horizontes, à esquerda a povoação de Santiago, à direita o casario envelhecido da cidade antiga, ao centro as avenidas largas, entremeadas com rotundas, umas após outras, cuidadosamente ajardinadas por mãos hábeis e agora mais atraentes com motivos natalícios, o rio a serpentear por entre os terrenos da antiga Quinta Agrária.
Desse relatório apenas resultaria o formulário monocórdico e já memorizado de nada significativo haver a assinalar, de tudo ser, em suma, normal.
Lá longe, onde alguém estaria à espera de mais dados para o preenchimento de lacunas, viria apenas um encolher de ombros e um passar adiante, resignado, como que a dizer que já estava à espera desse desfecho.

Em cima da mesa, o Inspector Fidalgo mantinha o dossier aberto numa fotografia de um tipo magro e ar calmo, discreto, incapaz de chamar a atenção. Os papéis não deixavam de referir que se tratava de um indivíduo complicado, estranho, que estava debaixo de olho, mas não referia a razão. Suspeita de alguém, se calhar infundada.
Apetecia-lhe escrever na capa do processo “Desaparecido em Combate”, mas a ideia ficava por aí. Desaparecido, não se sabia se estava e haveria algum combate em que estivesse envolvido?
Voltou a pegar no processo e releu alguns documentos, certamente à procura de alguma coisa que lhe tivesse escapado…
Alberto Vasconcelos, 64 anos, engenheiro agrícola, natural de Viseu, filho de um funcionário do fisco e de uma professora primária, repartindo o seu tempo entre casa e trabalho, visitando a sua terra natal com alguma frequência, ficando na casa que pertencera aos pais, precisamente aquela de onde o agente espreitou descuidadamente da janela.

Há cerca de um mês, desapareceu. Ele que era o ser mais previsível à face da terra, no dizer de todos os que o conheciam, desde vizinhos a colegas, que amigos era coisa que ninguém lhe vira, de um momento para o outro mudou rotinas, deixou de aparecer nos locais às horas costumeiras, enfim, desapareceu literalmente.

Aquilo que seria apenas mais um caso de polícia, acabou por interessar o Inspector Fidalgo, por uma razão especial, por ele mesmo ser natural de Viseu, ter a mesma idade e não fazer a mínima ideia de quem era o Alberto Vasconcelos, para mais sendo filho de um funcionário do fisco e de uma professora primária, tal como ele e residir na mesma rua da cidade onde os pais do Inspector Fidalgo ainda tinham uma casa. Mais ainda, pela descrição, as casas seriam praticamente gémeas…
O Alberto deixou, pois, de aparecer. Não houve pedidos de resgate, cartas de despedida, nada que pudesse indiciar que estivesse em dificuldades ou que não tivesse ido apenas ali ao lado, tratar de algum assunto; ou que tivesse decidido, muito simplesmente, desaparecer por conta própria. Não havia qualquer sinal de ter cometido algum crime ou que algum crime tivesse sido cometido sobre ele.

A sua vontade tinha sido a de se meter no automóvel e ir lá espreitar, à sua maneira, falar com as poucas pessoas que ainda viviam naquela zona, ameaçada de demolição em nome de um progresso cada vez mais incerto, tentar saber coisas para alimentar a sua curiosidade, mais que para adiantar o suposto caso que tinha entre mãos. E foi o que fez!

Estava na véspera de Natal, o dia era curto e dentro de alguns minutos já brilhariam milhares de lâmpadas por essas árvores e jardins, numa cidade que sempre assinalou a época.
Fidalgo estava sozinho, foi ao supermercado e comprou qualquer coisa para cear, recordando, ainda que vagamente, as noites mágicas de Natal da infância e juventude, com os pais e irmãos, noites especiais, ainda que repetitivas.
Passou pelas brasas, teve sonho fugaz em que entrava o desaparecido Alberto, mas também o Viriato que por aquelas terras terá andado e deu o nome ao recinto octogonal com ares de fortificação e que era a razão para a demolição de todas as casas, entre elas a da sua natividade: a Cava do Viriato.
Acordou de sobressaltado pesadelo, invadido de suores frios, percorrendo os escassos metros até à casa de banho, cambaleante.
Abriu a torneira do lavatório e passou água pelo rosto com as mãos em concha, erguendo a cabeça mirou-se no espelho. A cara que viu era de Alberto! O mesmo Alberto de quem andava à procura. Agitou a cabeça, cerrou os olhos, mas a cara permanecia a mesma e não era a sua!

Afinal, em plena noite de Natal, com ou sem magia, ele procurava-se a si mesmo, na procura daquele que gostaria de ter sido!

Algures, alguém notou o lugar vazio na ceia de Natal e deu o alarme.
A porta foi arrombada e Fidalgo conduzido ao Hospital, de onde transitou para uma casa de saúde, onde ainda hoje permanece, em tratamento de “distúrbios mentais” e à espera de mais uma noite de Natal, na companhia de Alberto Vasconcelos.



1 comentário:

Anónimo disse...

Um conto estranho. As melhoras para o Inspector Fidalgo neste Natal.
Festas felizes para todos
Deco