A
MALA VERDE
António
Breda Carvalho
Prémio Idalécio Cação, 2012; Junta de
Freguesia de S. Caetano, Cantanhede
Em março de 1945, numa manhã cinzenta e
fria, o chefe interrompeu o ofício que eu datilografava na pesada Olympia, para
me dizer que estava na hora de lhe mostrar o que tinha aprendido no curso. Não
foi bem assim que falou, lembro-me tão claramente como a água dos poços desse
tempo. O que disse, literalmente, foi:
— Menino,
prepara-te para a tua prova de fogo.
O inspetor Hélio Gaspar apoiava-se na
autoridade dos seus sessenta anos, e muito mais na graduação profissional,
igualzinha à proeminente barriga, para me tratar paternalmente. Aliás, todos os
estagiários eram sujeitos a esta condição de meninos imberbes. Depois, admitidos
ao serviço da Polícia de Investigação Criminal, teriam direito a um tratamento
mais adulto, com a palavra rapaz a marcar
a subida de posto.
— Até
que enfim! —
exclamei, quase saltando da cadeira. De pé, mais interessado na notícia do que
nos primeiros chuviscos que faziam cócegas na vidraça da janela por detrás das
costas largas do chefe, eu já parecia um verdadeiro polícia a espremer um
criminoso. —
Chefe, diga tudo o que sabe!
— Aqui,
quem dá ordens e decide sou eu! Digo quando entender que devo dizer.
Ordenou-me que terminasse rapidamente o
serviço que tinha em mãos, pois dentro de dez minutos teríamos uma viagem de
automóvel pela frente. Sentei-me, obediente, e acabei de redigir o ofício com
umas marteladas nervosas no teclado da robusta Olympia. Sentia-me entusiasmado
com o meu primeiro caso e bastante curioso relativamente à sua natureza. Política?
Roubo? Crime? O inspetor Hélio Gaspar tinha abandonado o gabinete e voltara no
preciso momento em que eu vestia o sobretudo, precavendo-me contra a chuva
grossa que caía ruidosamente. Sorriu, satisfeito com a minha prontidão, e
soltou um «vamos lá, menino!».
O Volkswagen pegou à primeira, e
deixei-o carburar uns goles de gasolina; depois acionei o limpa-para-brisas e
perguntei:
— Chefe,
para onde é a ida?
— Cantanhede.
Não era viagem cansativa percorrer os
quilómetros que separavam Coimbra dessa vila. Conhecia Cantanhede, de passagem
a caminho dos palheiros de Mira, durante os domingos de verão passados na praia
com os meus pais e irmãs. Quando o carocha
passou a Geria, apanhei a estrada de Ançã. A chuva carregava cada vez mais,
tanto como o céu escuro, e tive o cuidado de acender os faróis e de aumentar a
velocidade do limpa-para-brisas, ao contrário do andamento do carro. O meu
chefe ia todo lorde no banco do lado: as pernas escancaradas, as costas
repousadas no banco quase oblíquo e a barriga bojuda a bailar ao sabor da
trepidação do carocha.
— Está
um tempo de caca! —
queixou-se, os olhos colados ao vidro. Este inspetor nunca dizia: «Está um
tempo de merda!» Era sempre: «Está um tempo de caca!», que servia para todas as
estações do ano.
E logo borrou a limpidez da palavra caca e do ambiente com uma bufa
silenciosa mas mortífera. Apressei-me a descer o vidro, apenas uma fresta de
alívio. Espreitei-lhe a pança pelo canto do olho. Haveria mais borrasca
intestinal? Aquilo era uma autêntica botija de gás, daquelas redondinhas, de
treze quilos domésticos. Alguns segundos depois, quando o cheiro invadiu todo o
compartimento, ouvi a frase sagrada:
— Este
gás é hélio. Um dos melhores! — E riu-se desbragadamente, fazendo jus à alcunha de Inspetor Gás, ao mesmo tempo que acendia
um cigarro.
Que rico dia de batismo policial: uma
viagem debaixo de um temporal tremendo e uma asfixia de cheiros estonteantes!
Aproveitei a sua boa-disposição para atirar o barro à parede:
— Então,
chefe, qual é o problema?
Largou duas fumaças. Tossi. Cofiou a
pera grisalha e condescendeu:
— Assassínio
—
elucidou, laconicamente.
Assobiei. Uma estreia honrosa para mim.
Este estagiário iria mostrar-lhe quão injusto era o tratamento por menino.
— Há
suspeitos?
Não havia. E mais uma névoa de fumo
para cima de mim, que nada me aborreceu. Era bom que não houvesse suspeitos,
teria mais possibilidades de mostrar o meu faro inato para casos detetivescos.
— De
casos difíceis é que eu gosto, chefe.
— Ainda
és um menino, não te esqueças — disparou à
queima-roupa. Pior do que gás hélio!
— Por
pouco tempo, chefe —
atrevi-me a responder.
Esboçou um sorriso. Desceu o vidro, um
palmo, e deixou cair o coto do cigarro na estrada encharcada.
— Não
há suspeitos —
explicou — porque
o autor do crime está identificado.
Que grande desilusão! Era, realmente,
um serviço para meninos. Um caso tão
difícil como bater um ofício na monocórdica Olympia.
— Chama
a isto uma prova de fogo, chefe? — reagi, visivelmente mal-humorado.
— Claro!
— Vejo
tudo escuro à minha frente!
Riu-se e ajeitou-se no banco, cujas
molas rangeram.
— A
tua função é conseguir uma prova que incrimine o gajo. Pelas informações que
chegaram à delegação, é óbvio que só pode ter sido esse gajo. Mas precisamos de
uma prova irrefutável. É aqui que tu entras: o teu primeiro teste.
Gajo
era a segunda palavra mais usada por ele, a seguir a menino. O caso começava a agradar-me; tanto como as condições
meteorológicas: a chuva amainava, as nuvens escuras dissipavam-se e a cor da
manhã abria-se à frente do Volkswagen. Isto coincidiu com a chegada aos
arrabaldes de Cantanhede.
— E
agora, chefe? — perguntei
ao aproximar-me do centro da vila.
— Sempre
em frente.
— Para
a praia de Mira, chefe? Vim desprevenido, não trouxe calções de banho — brinquei com a situação.
O inspetor simpatizava com as minhas brincadeiras de menino. Riu-se à farta. E depois arrependi-me da piada porque ele
abriu a botija de gás.
— Está
um tempo de caca —
lamentou-se.
Segui em frente, convencido de que o
destino era a vila de Mira ou a praia. Mas logo corrigiu:
— Vai
em frente, e daqui a uns quilómetros cortas à esquerda, quando encontrares uma
placa virada para São Caetano.
— E
se a placa estiver ao contrário, chefe?
Olhou para mim, sem resposta imediata.
O menino tinha-o encurralado. Desceu
o vidro da janela, desta vez até ao limite, meteu a careca de fora e cuspiu
contra a deslocação do ar.
— Se
a placa estiver virada ao contrário, lixamos o gajo que fez isso.
Fui obrigado a rir-me, por
solidariedade profissional. Alguns quilómetros depois, suspendi o paleio, preso
a uma ideia que me assaltara a mente, no momento em que avistei ao fundo uma
placa que indicava o lugar de Febres.
— Ó
chefe, dá para fazer um desvio? — apontei a placa e continuei: — Gostava de conhecer
esse lugar.
— Tens
tempo. A vítima é um gajo daí.
— E
vamos para São Caetano? Não percebo, sinceramente.
— Vamos
para o local do crime, primeiro.
Soltei um ah de surpresa. E ele
surpreendeu-me também.
— O
que tu gostavas de conhecer em Febres sei eu bem.
Desacelerei, pasmado com a observação,
e obrigado a isso por ter atingido o ponto de viragem para São Caetano. Pedi
explicações, mas só depois de me ter posto, inutilmente, a adivinhar. A
resposta chegou-me aos ouvidos como uma cuspidela:
— Queres
conhecer a casa do escritor que andas a ler.
— Ando
a ler tantos escritores, chefe — respondi, mortalmente atingido, intrigado com o conhecimento
que ele tinha da minha vida privada.
— Sim,
menino. Infelizmente, andas a ler muitos autores perigosos.
— Como
é que o chefe sabe disso? — sondei, a medo.
— Muitos
anos nesta profissão. Por isso é que sou chefe, e tu, menino.
Eu andava a ler autores perigosos sem
saber. Lia Alves Redol, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, José Gomes Ferreira …
Desafiei-o: o que havia de perigoso nestes escritores?
— Literatura
subversiva, menino. Escritores comunistas. O comunismo é o inimigo número um da
Nação. Foge dele, se quiseres ser alguém com futuro.
Retorqui que não via nada de mal nestes
escritores. Respondeu-me, ironicamente, que por não haver qualquer perigo é que
o livro que eu andava a ler tinha sido proibido pela censura. Senti-me
completamente nu. Um bebé indefeso, a balbuciar:
— Que
livro, chefe?
— O
romance Alcateia, do Carlos de
Oliveira. Por isso é que estás tão interessado em ir a Febres. Queres conhecer
a casa onde ele viveu com os pais.
Fiquei boquiaberto.
Ele conhecia a minha vida particular e os meus pensamentos tanto quanto eu?
— Ó
chefe, o meu interesse é meramente literário. Eu nem sabia que o livro estava
carimbado pela censura. Isso aconteceu, de certeza, depois de o ter comprado na
Coimbra Editora, no ano passado. Eu cá não percebo nada de política.
— É
bom que não percebas. Pensa bem na tua vida. Estou de olho em cima de ti.
E com esta ameaça chegámos à povoação
de São Caetano, onde, por indicação dele, estacionei o carocha junto ao largo da capela. Saiu do carro. Não chovia, mas
senti o vento frio no nariz. Apeado, fez-me sinal de espera com a mão sapuda,
enquanto se dirigia a um gandarês que conduzia uma carroça. Percebi que lhe
perguntava qualquer coisa, pois o homem virou-se para trás e apontou a estrada
com a mão calejada de trabalho. Hélio Gaspar regressou ao automóvel e mandou-me
arrancar, sempre em frente. Obedeci, calado, ainda irritado com o raio da
conversa sobre os escritores comunistas. A estrada, de terra batida e cada vez
mais estreita, enfiava-se pelo coração dos pinheirais. Passámos por uma
pequeníssima povoação perdida no meio do mato, não mais de cinco casais no fim
do mundo. Ao longe, numa zona descampada, terra de semeadura, avistava-se um
charco. Toda esta paisagem me era estranha, por estar tão habituado à vida
citadina. Comecei a ficar impaciente e perguntei-lhe se faltava muito.
— Corujeira!
Sempre em frente — esclareceu,
olhando o exterior, ao mesmo tempo que murmurava: — Está mesmo um tempo de
caca!
Parámos, finalmente, numa aldeia que
supusemos ser a referida Corujeira, pela dimensão deste lugar em relação aos
casebres que deixáramos para trás. Entrámos na taberna, ao pé do largo à beira
da estrada, e o meu chefe, saudando a mulher embrulhada nuns trapos pretos, por
detrás de um balcão de madeira tingido de vinho, confirmou, primeiro, o nome da
terra, e depois perguntou-lhe se sabia alguma coisa do ourives morto. Tratava-se
de um ourives, e só nesse momento o meu chefe o dizia, não a mim, mas a uma taberneira.
A mulher esbugalhou os olhos (deve ter deduzido a nossa profissão), muito mais
a boca desdentada, e despejou o pouco que sabia do acontecimento dessa manhã.
— Uma
desgraça, senhores! Deus o tenha em paz!
A pobre mulher não desembocava
informações concretas, apenas sentimentos inócuos em catadupa, e o Inspetor Gás teve de lhe escorropichar
toda a saliva até conseguir apurar o caminho para a quinta da Murteira. Saímos
da taberna, depois de termos emborcado dois tintos, remédio que o meu chefe garantiu
ser eficaz contra o frio, apesar de me ter arrepiado todo por dentro.
Fomos a pé dali à quinta, a fazer o
mapeamento do terreno, quando subitamente nos deparámos com um magnífico solar
que se escondia por detrás de um maciço de árvores, provavelmente murtas. O meu
chefe assobiou. Quem diria? Quem diria que, numa terreola destas, havia uma
casa majestosa? O acesso ao eirado era direto, sem cerca ou portão a impedir a
passagem, a não ser o ladrar assanhado de três cães que, felizmente para nós,
se encontravam presos por correntes. O forte alarido dos cães devia funcionar
como sino, porque a porta principal entreabriu-se e uma cabeça coberta por uma
touca de cozinheira espreitou-nos, e logo desapareceu.
Ficámos parados, fora do alcance dos
cães, à espera de que alguém nos viesse receber, o que veio a acontecer
passados dois minutos. Era um rapaz com ar aristocrático, que, depois da nossa
identificação, se apresentou como neto do barão da Murteira, e exclamou:
— Ah,
vêm por causa do ourives morto!
E mais disse, sem arredarmos pé do mesmo
sítio, que os pais e o avô se encontravam ausentes, em viagem demorada por
Lisboa, onde tinham ido tratar de assuntos familiares. Tirou do bolso uma caixa
de cigarrilhas, e duas delas ficaram a arder, uma na boca do inspetor Gaspar e
outra na do aristocrata, que entretanto anunciara chamar-se Alexandre, sem dom, frisou, porque naquela casa só o
seu avô tinha o privilégio de ter título nobiliárquico. Disse isto com um riso cínico,
segurando a cigarrilha com a mão esquerda. E a voz dele tornou-se mole e
triste, quando, interrogado pelo chefe acerca do autor do telefonema para o
posto da GNR de Mira, assumiu ter sido ele mesmo a tomar essa diligência, após
o caseiro da quinta, o Casimiro, ter chegado ali, esbaforido, com as botas e as
calças enlameadas, a dar conta da sinistra descoberta: o Júlio da Moita, ourives
ambulante de Febres, boiava na água do poço grande.
Por instinto, sem algum motivo
especial, olhei o meu chefe nos olhos, e ele aproveitou o ensejo para me
comunicar uma decisão que me deixou incrédulo:
— Tenho
uns assuntos a tratar em Aveiro. Volto depois do almoço. O caso está por tua
conta.
Despediu-se do Alexandre e abalou pelo
caminho bordejado de vegetação, deixando-me impiedosamente desamparado como um
funâmbulo inexperiente. Fiquei a vê-lo, uma forma airosa de ganhar algum tempo
para delinear mentalmente um programa de ação. E a primeira ideia que me
ocorreu foi perguntar ao meu interlocutor onde se encontrava o corpo da vítima.
— Ao
pé do poço grande. Por minha decisão, o caseiro e alguns homens da quinta
retiraram o corpo da água. Aposto que custou menos aos meus homens tirar o
ourives do poço do que ao assassino matá-lo.
Achei interessante esta comparação e
indaguei, com um tom de voz bastante policial, o fundamento da afirmação. Ele
esmagou a cigarrilha com a biqueira do sapato de couro, agasalhou as mãos nos
bolsos da samarra com gola de raposa, imitando as minhas mãos nos bolsos do
sobretudo, e respondeu, com displicência:
— É
elementar: nesta altura do ano, o poço grande enche sempre.
— Quer
então dizer que não esteve nesse local?
— Claro
que não! Acha-me com cara de campónio?
O aristocrata sem dom queria morder-me as canelas.
— Se
não esteve lá, nem viu o corpo, como sabe que foi crime? É bruxo? — E, antes de ter tempo
de reação, rachei-o, com voz destemida: — Nem imagina o jeito que dava à Polícia
de Investigação Criminal um bruxo. Muito melhor do que um cão treinado.
Que pena o chefe não ter assistido a
esta resposta de antologia!
O jovem Alexandre, talvez da minha
idade, estremeceu e fixou-me o olhar por instantes. Acendeu outra cigarrilha,
demoradamente, a fazer de propósito, e só então se justificou:
— O
caseiro, o Casimiro, disse-me que o infeliz tem uma mossa na cabeça.
O autor do crime tinha sido esperto: a
água lava todas as provas; assim, o crime não tinha assinatura. Andei alguns
passos, pensativo, também para aquecer os pés e afastar-me dos cães que pareciam
mais próximos de mim. A empregada espreitava-nos por detrás da cortina da
janela. O aristocrata não tinha vontade de me convidar para um café quente,
especado no terreiro como um campónio; ou talvez fosse eu o campónio aos olhos
dele. Era inevitável inquiri-lo:
— Não
entendo uma coisa. Explique-me como se eu fosse um campónio: não esteve no
local do crime e não viu o corpo; então, como sabe quem foi o assassino?
— Ouviu-me
dizer isso? — desafiou-me,
arrogante.
— De
facto, não ouvi. Mas não foi você que ligou para a GNR de Mira? É que o
inspetor Gaspar já sabe quem matou quem.
— Eu
não disse isso —
redarguiu com um tom sobranceiro. — Eu disse que estava desconfiado do
filho do Manel Sorna. É muito diferente, não acha?
— Acho
que me deve explicar essa desconfiança.
E desenrolou a teoria da pobreza que
instiga o instinto à prática do crime para alcançar a riqueza fácil. A mala
verde do ourives cheia de ouro era a esperança de uma vida farta.
Começava a sentir-me desiludido com o
chefe. E era tempo perdido continuar a inquirição. Era poço sem água. Olhei o
relógio. Ainda tinha tempo de dar um salto ao poço grande antes do almoço.
Talvez uma barrigada de fome até à chegada do chefe. Pedi ao aristocrata
emproado que me arranjasse umas galochas, por amor aos sapatos que eu calçava.
E pedi-lhe, também, em tom imperativo, que me acompanhasse ao local do crime.
Pareceu satisfeito com a minha decisão, pois declarou que tinha muita
curiosidade em saber como se investiga um crime.
Não chovia, felizmente, e o vento frio
reduzira-se a um sopro cansado. Percorri caminhos vicinais, carreiros de cabras
e de burricos. Alexandre gabava-se de pertencerem todas essas terras em redor à
quinta da Murteira.
— A
terra e tudo o que nela mexe, desde os bichinhos às pessoas — acrescentou, inchado
de fidalguia.
Absorvi a imagem agreste dos campos de
cultivo, terrenos afogados e outros em pousio invernoso. E espantei-me com a
corajosa tenacidade de humildes camponeses teimando em arrancar da terra o
milagre do sustento. Vidas secas encharcadas no chão da fome. E chegou-me à
memória a abertura do romance Casa na
Duna: «Na gândara há aldeolas ermas,
esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e
colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno não desaba em chuva e
lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres.»
Saberia o inspetor Gaspar que eu já tinha lido este romance de Carlos de
Oliveira? E se esta era a realidade do chão português, exposto aos olhos do
mundo, que crime político cometia a literatura que nesta paisagem física e
humana se inspirava? Porquê tanto medo da arte? Respostas que a minha idade e a
minha experiência de vida ainda não alcançavam, apesar de ser um estagiário da
PIC.
Chegámos ao poço grande, imponente com
a nora ao centro, mergulhada no espelho de água que transbordava. Cumprimentei
o agente da GNR e o camponês, enquanto o Alexandre, ignorando-os, se debruçou
sobre uma capa de oleado e destapou o cadáver. Uma papa de sangue alastrava,
mais coalhada no rombo visível no parietal direito, sinal da forte pancada de
que fora vítima. O infeliz estava morto e limpo de vestígios forenses, já não
tinha qualquer utilidade para a investigação. Disse ao GNR para diligenciar a
remoção do cadáver. Nesta altura, o neto do barão da Murteira, apontando um
casebre à distância de uns seiscentos metros, informou-me de que era a
habitação dos Sorna. Perguntou ao caseiro, o homem que fizera companhia ao
agente, se tinha visto o Arménio Sorna. Resposta negativa. E logo me sugeriu
uma visita a essa gente; de certeza que uma busca aturada, mesmo sendo como
agulha em palheiro, seria bem-sucedida com a descoberta de uma prova
irrefutável. E eu teria ainda a possibilidade de espremer a verdade ao Arménio
Sorna com uns açoites bem dados.
Sem comentários, fingindo não o ter
ouvido, encaminhei-me para o casebre, com eles a seguir-me como dois cães
rafeiros. O casebre era a expressão da mais extrema pobreza: adobos em cima de
adobos a segurarem uma porta e uma janela. A habitação prolongava-se por um
alpendre e por currais. Bati à porta. Uma, duas vezes. Abriu-se devagar, a
medo, e uma moça assomou à minha frente. Tive dificuldade em ocultar o meu
espanto. Sem palavras, extasiava-me a olhar a figura grácil que me enchia os
olhos. A indumentária era simples e asseada; mas o verdadeiro encanto era a
elegância corporal e o rosto trigueiro, no qual resplandecia uma beleza
indizível que eu nunca vira na minha vida. Uma beleza que se mantinha intacta
apesar das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Associei o choro ao ourives
louro, jovem como ela, e depressa concluí que junto ao poço jazia o amor da sua
vida. Apresentei-me e pedi educadamente para fazer umas buscas, depois de ela
ter dito que os pais andavam a trabalhar no campo e que o irmão tinha ido a
Febres, de bicicleta, dar a triste notícia aos familiares do seu namorado.
Vasculhei o interior da pobre habitação
enquanto os outros, como furões, se infiltraram nos anexos. Nada descobri. Entabulei
conversa com a moça, Olinda de sua graça. De queixume em queixume, de lágrima
em lágrima, lamentou o azar do namorado, ourives de Febres, ambulante no
negócio de compra e venda de ouro; e também o seu azar, que dele só lhe restava
o anel que tinha no dedo, prenda do último aniversário. E que não pensasse ele
que ia ceder aos seus desejos; nem morta! Nesta passagem, fiquei com o
pensamento baralhado. O que Olinda afirmava não fazia qualquer sentido. Como
poderia ceder ao desejo de um cadáver? Teria ficado tresloucada com o desgosto?
— Nunca
serei do Alexandre, nem coberto com todo o ouro do mundo!
Terminou a frase no instante em que o
aristocrata chegava até nós, eufórico, sorridente, com uma mala verde nas mãos.
— Aqui
está a prova! —
E ofereceu-me a mala como se fosse um troféu de caça.
Coloquei-a em cima de uma cadeira,
levantei a tampa e examinei minuciosamente o interior vazio e amplo, cujos
cartões haviam desaparecido, assim como todas as peças de ouro e prata: anéis,
pulseiras, alianças, fios, correntes, relógios. Verifiquei que a mala era feita de folha-de-flandres. E descobri, pormenor
importantíssimo, uma pequena mancha de sangue a macular o lastro. Meti o nariz
no fundo da mala e cheirei a nódoa: sangue fresco.
— Então, precisa de mais provas?
— Não, isto é tudo o que preciso. Vamos embora. Está na hora
do almoço.
Fizemos o caminho de
volta à quinta. Quando passámos pelo poço grande, já não havia cadáver; apenas
um chapéu, sujo de lama, esquecido no chão, e a bicicleta do ourives tombada.
Alexandre mostrou-se muito solícito. No solar, depois de eu calçar os sapatos,
quis que o acompanhasse à mesa. Recusei. Fui direto à taberna, onde me consolei
com uns carapaus em molho escabeche, broa de milho e um pichel de tinto. No
fim, pedi à velhota que me fizesse uma chávena de café bem quente. Entretanto,
fui ordenando as ideias. Queria estar preparado quando o inspetor Gaspar
chegasse de Aveiro. Estava ansioso, mas tive de esperar mais duas horas, que
preenchi com passeios pelas redondezas, enchendo os olhos com a paisagem
gandaresa.
Eram quatro horas da
tarde quando ouvi o roncar do carocha.
— Então, menino, deste conta do recado?
Na viagem de regresso
a Coimbra, apresentei-lhe o meu relatório oral e o caso resolvido.
— A pancada foi no parietal direito, dada por um canhoto.
Alexandre é canhoto, tive a oportunidade de o confirmar: segura a cigarrilha
com a mão esquerda. A análise ao sangue vai comprovar que o assassino é o neto
do barão da Murteira. Matou o ourives por ciúmes, para se apoderar da pobre moça, sabe-se lá com que fins, que tem uma beleza
que seduz um santo.
O meu chefe coçou a
cabeça. Comentou que estava um tempo de caca, mas desta vez não abriu a botija
de gás. Isto motivou-me para continuar com as minhas reflexões.
— Já viu, chefe, do que estes fidalgotes rurais são capazes?
Até parece que estamos na Idade Média. Que nojo!
Acendeu um cigarro,
expeliu o fumo demoradamente e opinou:
— Andas a ler muito, menino. Os romances vão
ser a tua perdição. Vais ter uma vida de caca.
O inspetor Gaspar, instado por mim
acerca do resultado da análise ao sangue, adiava sempre uma resposta
esclarecedora e convincente. Pedia-me que esquecesse o caso, que me
concentrasse na conclusão do estágio, pois já tinha a prova real da minha
competência. Ameacei-o com a desistência do curso se o culpado não fosse
incriminado. Chegou-se a mim, paternalmente, pôs o braço pesado sobre o meu
ombro, e cochichou no meu ouvido:
— Rapaz,
nesta vida, as coisas nem sempre podem ser como a gente quer. Esquece o
assunto. O caso vai ser arquivado por falta de provas. Ninguém será condenado.
Amanhã, a vida será a vida que sempre foi naquela terra.
Não concluí o estágio para agente da
Polícia de Investigação Criminal, que meses depois passou a designar-se por
Polícia Judiciária. Não queria ser um polícia de caca. Arranjei emprego como
escriturário, dediquei-me à leitura de romances perigosos e acabei por casar
com a Olinda.
Autor do romance:
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