O autor, "Cardílio & Avita", replicou, de acordo com o que prometera:
Caríssimo Confrade Zé,
Como prometido, aqui me tem a comentar as suas questões e digo comentar porque, como pretende uma resposta para elas na solução e o problema não permite ser conclusivo a seu respeito, não posso desfazer as dúvidas que o "atormentam".
Como sabemos, na vida real como na ficção, quando há uma morte por explicar, a investigação criminal tem como principais objectivos elucidar "o que se passou", "por que razão isso aconteceu" e "quem terá sido o responsável por tal", objectivos estes que são habitualmente apresentados sob a forma de perguntas. Para se resolver um problema, é necessário recolher a informação, organizar e interpretar as evidências físicas e os factos que determinam os limites daquilo que efectivamente se passou, comparar com o que dizem as testemunhas e participantes, aplicando metodologias aceites e princípios científicos bem provados, e aplicar o raciocínio crítico para se chegar a uma conclusão.
Em geral um investigador esforça-se por determinar quem, o quê, quando, onde, como e porquê, os "famosos" 5W dos ingleses, mas nem sempre é possível encontrar resposta para tudo. Basta estar atento aos media para perceber que, muitas vezes, só ficamos a saber verdadeiramente o que se passou e quais as motivações subjacentes aos actos depois da confissão do criminoso.
Em "Lecy Onara", temos um caso destes, no qual faltam elementos para uma resposta cabal a alguns deste W , como é o caso, entre outros, das questões que o Confrade levantou.
Para se construir o texto "Lecy Onara", teve-se presente a máxima atribuída a Sherlock Holmes:
"It is an old maxim of mine that when you exclude the impossible, what ever remains, however improbable, must be the truth" .
Por isso, preconizamos como solução que "A personagem da estória Lecy Onara foi vítima de um crime e o agente que o perpetrou foi a personagem Tó Trinete", como fundamentamos no texto publicado neste Blog.
Julgamos que, em termos de discussão, não se pode ir mais longe do que foram os autores no texto referido para fundamentar esta solução, mas estamos perfeitamente preparados para aceitar uma solução mais conseguida, se a acuidade de outros Confrades a vier a encontrar, não falando do Orientador, pois este já detém a liberdade de poder aceitar outras soluções. Além disso, enquanto autores, é nosso entendimento que o modo como os concorrentes chegam à solução, os fundamentos que apresentam, os seus argumentos, o estilo literário que utilizam, etc. são assuntos que cabem exclusivamente na jurisdição do Orientador.
Como sabemos, avaliar é comparar. Se o problema suporta uma solução suficientemente fechada, podemos considerar que avaliar será medir até que ponto a resposta do concorrente se afasta da resposta certa, mas as questões formuladas em torno do problema, a relevância das respectivas hipóteses e as conclusões apresentadas pelos concorrentes nas suas respostas dependem da argúcia e capacidade de argumentação de cada um, pelo que não podem ser comparadas em relação a um esteriotipo determinado e têm de ser medidas por comparação entre as respostas dos concorrentes, o que também cabe inteiramente ao Orientador fazer. É por isso que consideramos que as perguntas que o Confrade Zé nos dirigiu, por um lado, devem ser avaliadas no contexto em que foram inseridas na sua resposta e, por outro, só o Orientador pode esclarecer até que ponto as considerou certas ou erradas.
Por isso, quero ressalvar que vou tomar estas questões tal como o Confrade Zé as colocou, fora do contexto, e sobre elas fazer os meus comentários, como prometido.
1ª Questão
-Por que razão foi detido Musk, em Paris, na Sexta-feira,13, à noite?
1ª Resposta
Não sabemos por que razão Musk foi detido , em Paris, na Sexta-feira,13, ao princípio da noite. As notas do narrador não esclarecem nem dão pistas que permitam uma conclusão fundamentada sobre esta questão.
1º ComentárioZé
Pela morte da Lecy, não (foi detido Musk ), pois a polícia só teve conhecimento do seu desaparecimento na Terça-feira seguinte e da sua morte na quarta (da semana seguinte)!
1º ComentárioAut
De acordo, face aos factos descritos nas notas do narrador.
2º ComentárioZé
Não é admissível que a polícia detenha alguém por um crime que nem ela nem ninguém sabia que tinha sido cometido (a não ser o autor)!
2º ComentárioAut
Também achamos que não é admissível, mas não concordamos com o sentido subjacente ao comentário, pois não há em parte alguma das notas do narrador qualquer evidência ou sugestão de que a detenção de Musk pela polícia tivesse que ver com a morte de Lecy Onara. Trata-se, portanto, de um caso dito de interpretação enviezada ou distorção dos dados (um tema que seria interessante discutir mais tarde), em que o investigador parece deixar que as suas convicções se sobreponham ao juízo crítico sobre os factos, pois, como sabemos, desacatos na área de embarque, posse de certas substâncias proibidas, enganos de identificação e outros motivos podem reter qualquer passageiro em qualquer aeroporto do mundo, o que pode ser erradamente interpretado como factor de causalidade de situações que podem não passar de meras coincidências.
2ª Questão
- Musk, em Paris, exibe uma carta de suicídio (dactilografada) assinada por Lecy. Quem a escreveu? Quando a recebeu?
2ª Resposta
O texto diz " e mostrou uma carta que ela lhe tinha escrito, na qual explicava as razões por que decidira pôr termo à vida."
Bom, eu não sei a que é que o Confrade chama carta de suicídio. O que o texto refere é que Musk exibiu uma carta que Lecy lhe escreveu a explicar as razões por que decidira pôr termo à vida e nada mais. Portanto, quem escreveu a carta foi a Lecy e podemos inferir dos dados que Musk a recebeu antes de ter iniciado a viagem para Paris e, necessariamente, antes da morte de Lecy.
Comentário
Como se pode inferir do texto do problema, há nele dois planos nitidamente diferentes. Num, movem-se as vizinhas, não como elementos menores, mas como vozes da opinião pública. Por isso, o que dizem, para a investigação, tem o valor que tem a opinião pública nesta matéria (outro tema interessante para aprofundar). No outro, situam-se as notas, as quais traduzem os dados oficiais do problema que foi possível apurar e nos são trazidos ao conhecimento pelas palavras do narrador.
Por isso, quando na nota do narrador se afirma que Musk "mostrou uma carta que ela lhe tinha escrito, na qual explicava as razões por que decidira pôr termo à vida.", temos de considerar que estamos perante um dado do problema já certificado. Pelo que, contrariamente ao que o Confrade assume, não podemos dizer se a carta era dactilografada nem se estava assinada, o que podemos concluir é que não há qualquer dúvida de que a carta foi dirigida a Musk, foi escrita por Lecy e explicava por que razões esta tinha decidido por termo à vida, mais nada.
Como se sabe, sob o ponto de vista da investigação criminal, há diferenças relevantes para os processos entre ter probabilidade de acontecer, ser provável acontecer, ser possível acontecer e ser verosímil acontecer.
Na nossa perspectiva, este dado sobre a carta em si não incrimina Musk, mas permitiria discutir a possibilidade de haver alguma cumplicidade entre Musk e Tó, embora ela fosse improvável com base nas notas do narrador. Aliás, esta questão de existirem cumplicidades na morte de Lecy é sugerida em várias passagens do texto, dando assim aos leitores oportunidade de discutirem este tema, mas o interesse e importância da sua abordagem na resolução do problema são assuntos entre os concorrentes e o Orientador da Secção.
3ª Questão
"Outro exemplar da carta apareceu próximo do corpo."
3ª Resposta
Relativamente a esta carta o texto refere: "(a carteira) tendo no seu interior uma carta de despedida dactilografada". A carta a que se refere o Confrade aparece dentro da carteira da vítima e há indícios suficientemente fortes para sustentar que esta carta não tem que ver com a que Musk exibiu perante a polícia.
Comentário
Do nosso ponto de vista, são nítidas as diferenças entre estas duas cartas. Enquanto que sobre a primeira se diz que era explicativa das razões da decisão de Lecy em pôr termo à vida e não se refere a uma despedida; sobre a encontrada na carteira de Lecy, diz-se apenas que é de despedida, nada se referindo sobre a existência de explicações . Além disso, esta carta é declaradamente uma carta dactilografada e, eventualmente, não assinada, pois a nota do narrador não indica quem foi o seu autor. Por isso, não concordamos que possa ser entendida como mais um exemplar da carta mostrada por Musk. Mais uma vez, vemos aqui um enviezamento ou distorção dos dados, como se as convicções? o preconceito? e/ou "a indução espontânea?" se sobrepusesse à razão crítica do investigador. Não conhecemos nenhuma lei universal que imponha que estes tipos de cartas tenham sempre os mesmos elementos e muito menos que elas sejam todas iguais.
4ª Questão
-Como chegou ( a carta) às mãos de quem a lá colocou? O criminoso? Como chegou essa carta às mãos de quem a colocou próximo do corpo?
4ªResposta
Sim, é muito possível e provável que tenha sido o criminoso quem escreveu a carta e a colocou na carteira da vítima.
ComentárioZé
-…Mas ele só contactou com a Lecy na Sexta ao fim da tarde e o Musk já ia em viagem...
-…Isto era fundamental para a minha solução...
ComentárioAut
Caro Confrade, admito que fosse fundamental para a sua resposta. No entanto, como não conheço o contexto da mesma, não sei se adianta alguma coisa a minha perspectiva sobre o assunto. Contudo, gostaria de adiantar o seguinte. Com base no que referi na questão anterior, tudo indica que se trataria de cartas diferentes, tendo o aparecimento da segunda na cena do crime contornos de elemento de "diversão". Na realidade, entre a morte da personagem e o seu lançamento à água mediaram, pelo menos, 92 horas, tempo mais que suficiente para que o criminoso (usando a sua terminologia) pensasse em formas de se libertar do corpo (o homicídio não parece ter sido premeditado e não é impossível que tenha sido involuntário, aspectos de que o texto parece pedir alguma discussão) ) e de se ilibar das suas responsabilidades no evento, pelo que seria possível que fosse ele próprio a elaborar a carta e colocá-la na mala de Lecy. (Mais problemática é a questão da presença da embalagem vazia de digoxina…).
5ª Questão
Parece-lhe lógico que, indo Tó e Namet todos os dias (ou frequentemente) ao café do Zé Galão lanchar (está no texto), o Namet, estando tantos dias fora, não tenha ido com Tó ao café nem o tenha contactado, na Segunda ou na Terça?
Comentário
Considero que esta questão tem uma composição demasiado complexa,pelo que irei decompô-la, para mais facilmente poder explanar a minha resposta.
Alínea a)
Parece-lhe lógico que (Namet) não tenha ido com Tó ao café nem o tenha contactado, na Segunda ou na Terça?
Resposta
Se aquilo que o Confrade me pergunta é se me parece racional que… o Namet… não tenha ido …., eu dir-lhe-ei que sim, parece-me racional. No entanto, julgo que analisar a lógica deste ponto não é o mais é o mais importante para análise deste facto, mas sim avaliá-lo quanto à possibilidade ou probabilidade (no sentido de demonstrabilidade) disso ter ou não acontecido, como comento mais à frente.
Alínea b)
Como se explica que o Namet, tendo chegado na Segunda (e vendo a casa como estava) só tenha participado o desaparecimento da mulher na Terça?
Resposta
Bom! É uma pergunta bastante curiosa e difícil de responder. Julgo que esta questão "o que esperar de um marido que ao chegar a casa não encontra a mulher à sua espera?", é muito delicada e sobre ela só cada um poderá responder por si. O que é certo é que as notas do narrador não fornecem dados que nos permitam ir além de sugestões de motivos, que não podem ser justificados fundamentadamente.
Alínea c)
Por que ligou (Nemet) logo para a Polícia e não tentou saber dela na Escola ou junto de amigos comuns? Não está no texto qualquer um desses contactos. Por isso, eu disse que me parecia que o Namet sabia demasiado.
Resposta
Sobre este facto, a nota do narrador diz o seguinte: (Namet) foi à polícia participar o seu desaparecimento. Não podia usar telemóvel. Por aqui, vemos que, na verdade, a personagem participou o caso directamente à polícia e não por meio de ligação (telefónica?), o que pode alterar substancialmente a interpretação do acto. Na realidade, não é indicado se Namet foi à polícia propositadamente ou não, o que permitiria apercebermo-nos melhor da importância que Namet teria atribuído ao caso ou perceber as suas motivações. No entanto, como as notas do narrador nada dizem sobre o assunto, só poderemos entender que este facto não foi apurado ou que, tendo sido, não foi considerado suficientemente relevante para a resolução do problema.
Comentário
Nas questões que coloca, o Confrade Zé refere: "indo Tó e Namet todos os dias (ou frequentemente) ao café do Zé Galão lanchar (está no texto)".
Ora, verificando o texto, aquilo que a nota do narrador nos informa sobre isto é que: " De manhã, antes das aulas, … À tarde vinha o outro par. O Tó, para o petisco, e o Namet, para o chá ou yogourt. Por isso, o que logicamente se pode entender daqui é que nos dias de aulas, à tarde, o referido par ia lanchar (usando a sua terminologia) à pastelaria (e não café) do Zé Galão, ou seja, iam apenas nos dias de aulas e à tarde. Mas, será que isto pode ser entendido como uma afirmação universal verdadeira? Se tivermos em conta que, na 6ª feira, 13 de Março de 2009, um dia em que houve aulas na Escola referida no problema, Namet partiu de manhã para Paris, teremos de concluir que a proposição mais importante com que temos de entrar no raciocínio é que "nos dias de aulas, à tarde, nem sempre Namet e Tó iam lanchar, ao Zé Galão ", ficando, deste modo, demonstrado que nos dias de aulas, à tarde, era possível existirem razões para eles não irem lá lanchar. Por isso, me me parece logicamente válido o argumento de que seria lógico que não tivessem ido lanchar na 2ª e 3ª feira ao Zé Galão. Aliás, não só é lógico que não tenham ido lá lanchar na 2ª e na 3ª feira, como podemos até encontrar na nota do narrador dados que permitem fundamentar que isso foi impossível na 6ª feira e na 2ª feira seguinte, mas possível na 3ª feira. Realmente, a certo passo, a nota diz-nos que " … (Namet) No dia 13, de manhã, partiu para um fim-de-semana em Paris, tendo regressado na noite de 2ª feira 16…". Aqui temos uma prova inquestionável de que na 6ª feira era impossível irem ambos de tarde lanchar juntos no Zé Galão, bem como na 2ª feira, pois Namet não estava em TN a horas que lhe permitissem fazê-lo.
Note-se que, no dia seguinte ao da chegada, 3ª feira, a uma hora não declarada, "Namet foi à polícia participar o seu desaparecimento" e não a sua morte. Por isso, é razoável pensar-se que Namet teria razões para considerar a ausência de Lecy neste dia como uma situação anormal, mas não tanto que tivesse posto a questão de ela ter morrido. É muito curiosa a atitude da polícia no atendimento destes casos, mas isso só visto…
De qualquer maneira, no quadro descrito, seria possível que Namet e Tó tivessem lanchado, na tarde dessa 3ª feira, como habitualmente, no Zé Galão, antes ou depois de aquele ir à polícia, ou até mesmo nos dias seguintes que mediaram até Lecy ter sido encontrada sem vida no rio, mas não se encontram indícios nas notas do narrador que possam fundamentar a hipótese de tal ter acontecido. Por isso, ou este facto não foi esclarecido ou, tendo sido, não foi considerado suficientemente relevante para a resolução do problema e não foi incluído na nota do narrador.
Tendo em conta que Namet regressava na 2ª feira à noite a TN de uma viagem a Paris e era doente do coração (Não podia usar telemóvel por causa do coração… digoxina… são frases que mereceriam alguma atenção), seria possível que o cansaço se sobrepusesse ao desconforto que encontrou em casa e à eventual preocupação de não ter aí encontrado Lecy, levando a que se tivesse fechado no quarto a dormir até ao outro dia. Sabe-se lá! São tão diversificados os padrões de relacionamento dentro dos casais…
Nos problemas policiários, como na vida real, não só nem todas as hipóteses têm o mesmo valor ou podem ser investigadas, como nem todas são relevantes para explicar os casos. No entanto, nestes problemas torna-se mais difícil lidar com as hipóteses, não só por os textos serem sucintos, devido às limitações de espaço, como pela dificuldade adicional de se estar a tratar com textos escritos nesta nossa língua, por vezes, tão difícil de interpretar, e que constitui, amiúde, mais um adversário com que os concorrentes têm de se bater.
Deste modo, as questões levantadas pelo Confrade relativamente às relações entre Namet e Tó parecem-me interessantes, sobretudo pela pertinência da discussão que permitem em torno de uma possível cumplicidade entre eles na morte de Lecy, que pode considerar-se sugerida no texto, mas sobre a qual este não permite conclusões, mas pode causar um esforço adicional ao Orientador na avaliação das respostas dos concorrentes.
E é isto, caro Confrade Zé, o que tenho para replicar ao seu comentário. Se estiver de acordo, muito bem, se não estiver, muito bem, na mesma. Responder-lhe foi um interessante exercício. Por isso, eu é que lhe agradeço as questões que me colocou e ao Orientador da Sessão a possibilidade de lhe responder.
Sempre ao dispor
Um abraço
"Cardílio & Avita"
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