CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO
{MENÇÃO HONROSA.
AUTORIA: "RIGOR MORTIS",
QUE ASSINOU O TRABALHO COMO TCHANG}
AUTORIA: "RIGOR MORTIS",
QUE ASSINOU O TRABALHO COMO TCHANG}
“Jantar
de família”
Original
de TCHANG
A
casa erguia-se, elegante, no meio do arvoredo e rodeada de um relvado bem
tratado. Conhecida por “casa Saavedra”, do nome da família que lá vivia há mais
de 40 anos.
Nos
últimos anos tinha apenas dois habitantes, o dono, Aparício Saavedra, e o seu
mordomo de longa data, Gaspar. Mas tempos houvera em que lá morava uma dezena
de membros da família, entre adultos e crianças.
Aparício
Saavedra, 75 anos, estatura mediana solidamente constituída, grisalho, suíças
fartas, sempre impecavelmente escanhoado, era um self-made man. Começara a trabalhar aos 15 anos, moço de entregas
de um talho, para ajudar os pais quando do nascimento da segunda irmã, mas aos
20 era sócio de um pequeno café, aos 25 dono de um restaurante, aos 30 co-proprietário
de uma empresa de intermediação de frutas, aos 40 proprietário de uma grande
empresa de importação e exportação de produtos alimentares. Pelo meio, obtivera
uma licenciatura em Finanças, que lhe daria uma base sólida para uma gestão
profícua dos seus negócios. Muito rico, nunca casara, não obstante se dizer que
tinha conhecido e privado com várias mulheres, em tempos idos.
As
suas três irmãs, já falecidas, tinham nascido entre os seus 14 e 16 anos.
Casadas tarde, depois dos 30, nunca tinham sido felizes nem saudáveis. Viúvas
poucos anos depois dos casamentos, viriam a falecer pouco tempo depois,
deixando cada uma delas um filho – Luís Miguel, Carla e Teobaldo – de cuja
educação Aparício Saavedra se encarregara.
Aparício
era um homem afirmativo e persistente, mas severo e rigoroso, exigente até ao
limite da maldade com os outros. Dessa maneira de ser se ressentiu a sua
relação com os sobrinhos. Ternura era um sentimento inexistente, quer entre
eles, quer em relação ao tio.
Luís
Miguel, 27 anos, alto, olhos perscrutantes e cabelos castanhos, tinha sido um enfant terrible. Mulherengo, de sorriso
fácil e conversa fluente, esperto e oportunista, cedo revelara a sua
personalidade aventureira, em detrimento dos estudos. Não fora isso e teria
sido o sobrinho favorito, pelo seu estilo afirmativo. Assim, o tio nutria por
ele um certo desprezo, ainda que mesclado de inveja.
Carla,
26 anos, licenciada em Relações Internacionais, era alta, bonita e solteira,
nem se lhe conhecendo namorados. Ruiva, de cabelo farto e ondulado, tinha uma
personalidade forte. Tal como o tio, era inteligente, reservada, fria,
calculista e distante. Aparício tivera sempre um fraquinho por ela, sem que tal
o fizesse abrandar as exigências. Pelo contrário, era dela que ele mais exigia,
sempre.
Teobaldo,
23 anos, era totalmente diferente. Baixo, gordo, flácido de corpo e de
personalidade, tímido, receoso e acanhado, era estudante de Matemáticas,
faltando-lhe ainda 2 anos, no mínimo, para terminar a licenciatura. Era
desprezado pelo tio, que o considerava como fraco e incapaz.
Gaspar,
o outro residente na “casa Saavedra”, um homem alto e forte na casa dos
sessenta, estava há 35 anos ao serviço de Aparício Saavedra, tendo começado
como seu motorista quando fundara a sua empresa de import-export. A sua história sentimental tinha um único episódio,
um casamento e divórcio já como empregado de Aparício Saavedra, com uma antiga criada
da casa. Dizia-se na altura que a mulher, atraente e sensual, o teria traído poucas
semanas depois de casar, e que teria sido o Aparício a suportar as despesas do
divórcio. Apesar da severidade com que era tratado por Aparício Saavedra,
unia-os uma longa e profunda relação, temperada com uma cumplicidade mútua.
………………………………….
Naquela
noite os três sobrinhos tinham regressado à “casa Saavedra”, chamados pelo tio
para os informar das modificações que tinha feito nas suas disposições
testamentárias. O convite era para o jantar mas estendia-se para a pernoita, já
que o Gaspar lhes tinha preparado os seus antigos quartos, no primeiro andar da
moradia.
Servidos
pelo Gaspar, os quatro sentaram-se na velha, mas imponente, mesa de carvalho da
sala de jantar. Sopa de vegetais, rosbife com puré de batata e fruta da época,
regados com um vinho chileno de que Aparício muito gostava. Apreciador de
vinhos e bebidas generosas, Aparício bebia com um ritual sui generis, muito seu. O primeiro gole, antecedido de um grande
espaço de tempo em que apenas contemplava o copo e aspirava profundamente os
aromas, era mantido na boca por largos segundos, para completa submersão das
papilas gustativas. Os goles seguintes, de grande volume, eram rapidamente
engolidos.
As
conversas foram agressivas, como era timbre entre eles desde há muito.
–
Qual a tua última aventura, Luís Miguel?
–
Colômbia. Terra de grandes oportunidades, sabe?
–
É… Droga, corrupção, crime… É só escolher… – comentou a Carla.
–
Não é bem assim! Já foi, agora não. Tu, mestre em relações internacionais,
devias bem saber como as coisas mudaram por lá…
–
Então por que não ficaste lá?! O ambiente dava bem contigo, de certeza…
–
A verdade é que segurança e confiança não são as palavras de ordem por aquelas
bandas – disse o tio – mas isso nunca te fez hesitar, de facto.
–
Ora! Diga-me lá onde é melhor! Aqui, não?... Por lá terias excelentes
possibilidades de finalmente arranjar um marido! Até tu, Teobaldo, te
safavas!...
–
Eu?!... Er… Quer dizer… achas que sim? – atreveu-se Teobaldo a perguntar.
–
Vai-te lixar! – explodiu a Carla ao mesmo tempo.
–
Deixa-te de parvoíces, Luís Miguel – interrompeu Aparício – aquilo é terra onde
só vingam aventureiros sem escrúpulos como tu. Quanto a ti, Teobaldo, mais vale
que procures terminar o teu curso, ao menos para teres alguma coisa em que
assentar o teu futuro. Nunca terás grande futuro, sendo como és, mas enfim… E
tu, Carla, já vai sendo tempo de pensares em família!
–
Só se for com algum japonês, chinês ou vietnamita que tenha jeito para cozinhar
– retorquiu Luís Miguel, sarcasticamente. – Nunca te vi satisfeita senão a
comer pratos orientais!...
–
Chega! Depois do jantar – continuou Aparício – quero conversar com cada um de
vocês na biblioteca.
A
seguir ao café, pelas dez e meia, Aparício Saavedra dirigiu-se para a
biblioteca, dizendo ao Gaspar para lhe levar o cognac e para fazer entrar cada um dos sobrinhos – o Luís Miguel, a
Carla e o Teobaldo, por essa ordem.
–
E não quero ninguém a escutar à porta!
Foram
três conversas rápidas, meia dúzia de minutos com o Luís Miguel e depois com a
Carla, apenas dois ou três minutos com o Teobaldo. Foi o tempo necessário para
o Gaspar levantar a mesa.
Quando
Teobaldo saiu, os três sobrinhos retiraram-se para os respectivos quartos, no
primeiro andar, sem sequer dar as boas noites. Pouco depois, Gaspar entrou na
biblioteca para perguntar se o patrão precisava de mais alguma coisa. Ao sair
fechou a porta e dirigiu-se para o seu quarto, junto à cozinha.
………………………………….
Na
manhã seguinte, pouco depois das sete, Gaspar dirigiu-se novamente à
biblioteca, para guardar a garrafa de cognac.
Encontrou Aparício Saavedra na mesma poltrona em que o vira na noite anterior.
Esgar pronunciado da boca, evidência de vómitos sobre o peitilho da camisa,
rosto fortemente contraído, nariz, orelhas e dedos arroxeados, fizeram-no crer
que o seu patrão teria sido envenenado.
Pegando
no telefone, ligou imediatamente para a polícia e reportou o facto. Depois
subiu ao primeiro andar, acordou e avisou os três sobrinhos, instando-os a
esperarem pela polícia na sala de jantar.
………………………………….
A
polícia chegou à “casa Saavedra” pouco depois das oito horas – dois agentes, o
médico-legista e o inspector Francisco Campos.
Conduzidos
pelo Gaspar à biblioteca, o inspector observou rapidamente o cadáver,
grotescamente contorcido numa das duas excelentes poltronas de cabedal, à
entrada da sala, tomando nota mental dos sinais evidentes de envenenamento e da
mesinha de apoio ao seu lado, onde estava uma garrafa de Courvoisier e um balão. Dedicou depois a sua atenção, com evidente
prazer, à impecável ordenação da enorme e cuidada colecção de livros. Sem
dificuldade encontrou secções de livros de viagens, de romances históricos, de
mistérios policiais, de história da Europa e de Portugal, de astronomia… E, ao
fundo da biblioteca mas com evidente realce, de edições antigas, muitas
manifestamente valiosas.
Deixando
os agentes e os sobrinhos na sala de jantar, fechou a porta da biblioteca atrás
de si, foi para um recanto da biblioteca no extremo oposto à entrada, e começou
os interrogatórios pelo Gaspar, enquanto o médico-legista examinava o cadáver.
–
Entrou alguém nesta sala? – perguntou.
–
Apenas eu, inspector – respondeu Gaspar. – Entrei pouco passava das sete, vi
como estava o senhor Saavedra e decidi chamar imediatamente a polícia, ali
daquele telefone. Não mexi em mais nada, fechei a porta da biblioteca e não
deixei aqui entrar mais ninguém.
–
Aquela garrafa de brandy?...
–
Cognac, inspector. Como
habitualmente, o senhor Saavedra tomou um cognac
depois do jantar. Aqui na biblioteca, enquanto conversava com cada um dos
sobrinhos.
–
A que propósito estavam cá os sobrinhos? Ou viviam aqui em casa?
–
Não, já há alguns anos que aqui não vivem. Mas ontem o senhor Saavedra
chamou-os cá para jantar e pernoitar, porque os quis informar das alterações
que tinha feito no seu testamento.
–
Testamento? – inquiriu o inspector – E o que é que ele deixou a cada um dos
sobrinhos?
–
Não faço ideia, inspector. Nem ele nem os sobrinhos me disseram fosse o que
fosse.
–
E você? Coube-lhe alguma parte da herança?
–
O senhor Saavedra disse-me em tempos que quando morresse me deixaria o
suficiente para o resto da minha vida – respondeu Gaspar. – Aprendi há muito
que ele nunca fazia uma falsa promessa, por isso nunca lhe perguntei nada sobre
o assunto.
Instado
pelo inspector, Gaspar retratou em pormenor a personalidade de Aparício
Saavedra e de cada um dos sobrinhos. Referiu, com profusão de detalhes, que o
relacionamento entre eles tinha sido sempre tenso e agreste, por força da
maneira de ser do tio. Mas acrescentou que nunca ele tinha desleixado as suas
responsabilidades como único parente dos “pequenos”.
–
Num homem aparentemente solitário, como você, parece-me estranho conhecer tão
bem as vidas dos Saavedra – comentou o inspector.
–
Quem recorda nunca está só, inspector…
Relatou
depois as conversas havidas ao jantar, com igual minúcia e precisão, em
particular os “mimos” trocados entre os primos e entre estes e o tio Aparício.
–
Foi depois do jantar que o senhor Saavedra foi para a biblioteca, pedindo-me
que ali lhe servisse o cognac, onde
teve as conversas com os sobrinhos, penso que sobre o testamento. Por ordem expressa
dele, as conversas foram em privado, com a porta fechada, primeiro com o Luís
Miguel, a seguir com a Carla e por fim com o Teobaldo. Foram conversas curtas,
apenas alguns minutos com cada um. Mas a mais curta de todas foi a última, com
o Teobaldo. Acho que não terá durado mais que dois minutos. Quando os sobrinhos
subiram para os quartos, entrei na biblioteca para ver se o senhor Saavedra
precisava de mais alguma coisa. Depois fui-me deitar.
–
Ele pediu-lhe mais alguma coisa? E como o achou?
–
Disse-me apenas que não… – Gaspar hesitou – mas fê-lo com um certo esforço,
como se estivesse em sofrimento. Imagino que as conversas com os sobrinhos não
tivessem sido agradáveis…
–
Está bem – disse o inspector. – Faça-me entrar o Luís Miguel para aqui.
Ao
entrar na biblioteca, Luís Miguel olhou intensamente para o corpo do tio, à
volta do qual se afadigava o médico-legista, e seguiu para o recanto de onde o
inspector o observava.
–
Diga-me tudo o que aconteceu quando você e o seu tio, ontem depois do jantar,
tiveram a vossa conversa aqui na biblioteca.
–
Bom… Isso diz-se muito facilmente… Ele nem sequer me mandou sentar… Estava sentado
na poltrona, agarrado ao seu balão de cognac,
a cheirá-lo profundamente como de costume, enquanto me dizia que a minha parte
da herança seriam os seus dois carros, um Mercedes e um Bentley. “Não mereces
mais nada”, disse-me ele, “mas como és filho da minha irmã, vou ainda dar-te um
livro da minha biblioteca. É um livro valioso! Vê lá o que fazes com ele!”
–
Levantou-se da poltrona – continuou o Luís Miguel – foi a uma estante aqui ao
fundo e regressou com um livro que me passou para as mãos. Vi que era uma
espécie de atlas, com mapas antigos. Perguntei-lhe o que é que recebiam os meus
primos… “Não é da tua conta!”, foi a resposta dele. “Cada um dos teus primos
terá a parte que merece. O Gaspar, pela sua fidelidade e dedicação, terá um
quarto dos meus bens. O resto será entregue a uma instituição de caridade.” E tomou
um gole de cognac, que saboreou na
boca enquanto olhava para o meu espanto! E mandou-me embora.
–
De que é que acha que o seu tio morreu? – perguntou o inspector.
–
Não faço ideia, mas pelo aspecto diria que de envenenamento. A cara dele faz-me
lembrar umas cabeças que vi num museu da Colômbia, de homens alvejados pelos índios
do Amazonas com setas com curare…
Acompanhando
o Luís Miguel até à porta, o inspector notou que aquele evitou tornar a olhar
para o corpo do tio. Chamou a Carla e encaminhou-se com ela até ao mesmo
recanto da biblioteca. Ao passar ao lado da poltrona onde estava o corpo do
tio, a Carla pareceu estremecer. Ao sentarem-se no recanto, em frente um do
outro, o inspector notou a intensa palidez que lhe tomara o rosto.
–
Conte-me o que se passou quando você e o seu tio, ontem depois do jantar,
tiveram a vossa conversa aqui na biblioteca.
–
Foi uma conversa rápida, apenas alguns minutos – respondeu a Carla, após uns
segundos em que, nitidamente, procurava controlar as suas emoções. – O tio
Aparício disse-me apenas que, quando ele falecesse, eu receberia um terço dos
seus bens. Além disso ia dar-me um valioso livro da sua biblioteca. Deixou-me
ali de pé enquanto foi buscar o livro, deu-mo e mandou-me embora.
–
Já olhou para o livro? – perguntou o inspector.
–
Sim, quando cheguei ao meu quarto. É uma edição antiga da “Peregrinação” de
Fernão Mendes Pinto, do século XVII. Calculo que vale uma fortuna.
–
O seu tio bebeu do balão de cognac
enquanto você esteve com ele?
–
Não – respondeu Carla, após uma pequena pausa. – Nem sequer pegou nele.
–
Sabe o que recebem da herança os seus primos?
–
Não. Ele não me disse e eu também não perguntei – respondeu a Carla, baixando a
cabeça.
–
De que é que acha que o seu tio morreu? – perguntou o inspector.
Levantando
a cabeça num gesto sobressaltado, Carla respondeu:
–
Parece-me óbvio que ele foi envenenado…
O
inspector levou a Carla até à porta da biblioteca e mandou entrar o Teobaldo.
Este, ao ver o corpo do tio, quedou-se estático e pálido, começando a tremer
convulsivamente ao fim de alguns segundos. Pegando-lhe por um braço, levou-o
até ao mesmo recanto da sala, de onde, sentado na cadeira onde os primos também
se tinham sentado, não podia ver o cadáver.
–
Acalme-se e diga-me tudo o que aconteceu na sua conversa de ontem à noite com o
seu tio, aqui na biblioteca…
Muito
a custo, gaguejando e até soluçando, Teobaldo lá respondeu à pergunta:
–
O t-t-tio Aparício chamou-me para me dizer que me p-p-pagaria uma pensão até eu
acabar os estudos, mas que daí em diante teria q-q-que me g-g-governar sozinho.
Depois foi b-buscar um livro e deu-mo, dizendo “Este livro é para ti. Se um dia
tiveres necessidade p-p-poderás vendê-lo, o seu valor p-p-permitir-te-á v-viver
vários anos.”
–
Já olhou para o livro?
–
Er… Não… Ainda não… G-G-Guardei-o na maleta que trouxe ontem.
Ao
levá-lo para fora da sala, o inspector fez o possível para que o Teobaldo não
passasse perto do cadáver do tio, nem que tivesse a possibilidade de olhar para
ele.
………………………………….
Regressando
à biblioteca, fechou a porta e perguntou ao médico-legista:
–
Então, doutor… Que tem para me dizer?
–
É a primeira vez que vejo um caso destes… E olhe que já tenho muitos anos
disto! Não fosse a minha curiosidade profissional e os benefícios da internet,
estaria aqui à nora… Pelo menos até completar uma série de testes
laboratoriais…
–
Vá lá, vá lá, doutor…
–
Este homem morreu de paragem respiratória provocada por envenenamento. Mas
antes de morrer passou pelas passas do inferno! O esgar da boca – de toda a
cara! – os vómitos, as mãos contraídas a agarrar desesperadamente os braços da
poltrona, a posição das pernas… Tudo aponta para um sofrimento inaudito, ainda
que não tenha durado muito tempo!
–
Pode dizer-me a que horas ocorreu o óbito?
–
Por aquilo que vi, há dez horas atrás – respondeu o médico-legista, olhando
para o magnífico grand-father clock
que estava por trás da poltrona, que mostrava 9h15 – mas garantias só depois de
uma autópsia!
–
Portanto às onze e um quarto… O jantar terminou às dez e meia… E as conversas
com os sobrinhos foram apenas de alguns minutos… Humm…
–
Hein?! – exclamou o médico-legista.
–
Que tipo de veneno poderá ter provocado uma morte assim, actuando para aí numa
meia hora?
–
Alguma vez comeu fugu, inspector? – respondeu o médico, de mau humor. –
Aconselho-o a nunca o fazer!
–
Fugu? Que diabo é isso?
–
Uma iguaria japonesa, feita com um peixe chamado peixe-balão, ou baiacu, que
existe nas costas do Japão mas também noutros sítios, como na América do Sul.
Acontece que nas gónadas e no fígado desses peixes se acumula uma toxina
tremenda, a tetrodotoxina… Se o sashimi for feito sem os conhecimentos
necessários… Bom… É uma morte assim como a deste tipo! Se tiver sorte, poderá
ainda viver um par de horas, se não… Uma meia hora chega!
–
Ah! – Acrescentou o médico. – E ou me engano muito, ou o balão de cognac de onde ele bebeu ainda tem
restos do veneno!
–
Confio na sua experiência, doutor… E baseado na sua conclusão e no que fiquei a
saber com os interrogatórios que fiz, penso que já sei o que aconteceu… E quem
foi o assassino…
O
inspector saiu da biblioteca, foi até à sala de jantar, onde estavam,
compungidos, Gaspar e os três sobrinhos do Aparício Saavedra. Chamando os dois
agentes que tinham vindo com ele, deu-lhes instruções em surdina… Os agentes
saíram da sala e subiram ao primeiro andar da moradia…
………………………………….
E
você, Leitor? Quais são as suas conclusões?
A
última parte do texto vai desvendar o caso. Não continue a leitura sem tirar as
suas próprias conclusões!
………………………………….
–
Ora bem… – disse o inspector Francisco Campos, após uma pausa de alguns minutos,
dirigindo-se aos quatro. – Presumo que três de vocês quererão saber quem foi que
matou o Aparício Saavedra, envenenando o cognac
que ele tomou na biblioteca…
Os
quatro, Luís Miguel, Carla, Teobaldo e Gaspar, olharam uns para os outros, mas
nada disseram.
–
Comecemos pelo Gaspar… Ele não foi o assassino. Nada tinha a ganhar em o matar,
pelo contrário. Acostumado como ele estava a servi-lo como mordomo, tinha a sua
vida garantida e razoável enquanto o patrão vivesse… E se estão a pensar na
parte da herança que o Aparício Saavedra lhe deixou, desenganem-se… Condenado
pelo seu assassínio não receberia um cêntimo… Já agora, Gaspar, quando se
despediu dele, ontem à noite, o senhor Saavedra estava em sofrimento, sim, mas
não por causa das conversas com os sobrinhos. Era o veneno que já começara a fazer
sentir o seu efeito.
–
O Teobaldo também não foi – continuou. – Manifestamente, nunca teria a coragem
de o fazer… Além disso, tendo sido o último a ter a conversa com o tio, o
veneno não poderia ter começado a fazer-se sentir dois ou três minutos mais
tarde, quando o Gaspar lhe foi perguntar se precisava de mais alguma coisa.
Nesse
momento os agentes desceram do primeiro andar. Um deles, dirigindo-se ao
inspector, deu-lhe discretamente um pequeno saco de plástico com qualquer coisa
dentro, enquanto lhe sussurrava ao ouvido. O inspector, de costas para os
quatro, olhou para o objecto dentro do saco de plástico e sorriu-se.
–
O Luís Miguel é um claro candidato a assassino… Não só pela sua experiência de
vida, mas também como vingança pelo desprezo com que o tio o tratou, em vida e
relativamente à herança… Mas era preciso que tivesse sabido da decisão
testamentária em relação a si bem antes do jantar, para poder preparar o
envenenamento, e tal não foi o caso, obviamente. Mais importante do que isso,
no entanto, foi o facto de ter sido o primeiro a ter a conversa final com o
tio… Vocês conhecem o ritual de bebida dele. Se o envenenamento do cognac tivesse sido feito pelo Luís
Miguel, nunca teria passado despercebido ao Aparício Saavedra ao saborear o
primeiro gole logo antes de o mandar embora…
–
E falta aqui a Carla, não é?... Pois é… Deve-lhe ter sido muito difícil aceitar
que o seu tio até lhe tinha uma certa afeição, mas que nem por isso deixava de
lhe exigir mais que a qualquer dos seus primos, nem de a tratar com menos
dureza. Pelo sim, pelo não, decidiu que o melhor seria que ele morresse, agora
que tinha refeito as suas disposições testamentárias… Acreditava que ele lhe
iria deixar uma parte substancial da herança, mas não podia confiar em que ele
não viesse mais tarde a reduzir a sua parte. Ao ver o balão de cognac poisado na mesinha, percebeu que
a primeira parte do ritual de bebida do seu tio já tinha ocorrido… Era a sua
oportunidade, única… Foi só aproveitar o meio minuto em que ele se afastou para
ir buscar o livro que lhe ofereceu para despejar o veneno no balão… O segundo
trago de cognac seria grande e
rápido… Mas foi uma enorme imprudência da sua parte ter guardado o frasquinho
em que trouxe o veneno junto aos seus perfumes… Talvez para se livrar dele num
local mais discreto e seguro, não?
E
o inspector Francisco Campos exibiu o saco de plástico que lhe tinha sido
entregue pelos agentes.
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