terça-feira, 30 de junho de 2015

"QUE TREMENDA MARISCADA!" - ORIGINAL DE JARTUR


CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO

{MENÇÃO HONROSA. 
AUTORIA: "JARTUR", QUE ASSINOU O TRABALHO 
COMO JAMES MARABUTO}



QUE TREMENDA MARISCADA!

Conto de índole policiária.
Original de: James Marabuto              

O telefone estremeceu com o vibrar da campainha, sobre a minha desorganizada mesa de trabalho, e eu atendi prontamente, recitando para o bocal:
- Estou, fala James.
- Senhor James. – disse a telefonista -  Está em linha um senhor, muito simpático e conversador, como nunca ouvi, que deseja falar consigo.
- Então ligue, sua grande atiradiça, estou à espera! – Ouvi a voz doce da Rosalina a anunciar a ligação, e logo uma voz enérgica que nunca antes ouvira, perguntou:
- É o James? James Marabuto?
- Sim, sou o James! – respondi com ar inquiridor – Sou… James Marabuto!
- Olá jovem, como estás? Estás bem?! Tudo fixe?! Como vai essa juventude?!
- Eu estou bem! – respondi um pouco à defesa – Mas quem fala? Julgo não o conhecer! Mas… se me tratas por tu, retribuo o tratamento… mas insisto! Quem és tu? Sim, quem és tu? Óh! voz desconhecida?!
- Tens razão, pá! Nós conhecemo-nos… permito-me dizer… de “ginjeira”, mas apenas por cartas… - fez uma pausa significativa. - E pela leitura dos nossos escritos, nas páginas das secções onde cada um de nós tem mostrado e dado o melhor de si.
- Isso diz-me qualquer coisa, mas não me revela nada! – esclareci, mordazmente. – Tenho dezenas de confrades, nessa situação de… conhecidos de ginjeira… epistolarmente!  
- Tens razão, pá! Comigo passa-se o mesmo! Então, terminemos com o mistério, jovem amigo! Aí vai, sem mais delongas nem “suspense”! Sou o Constantino. Agora já me topas? O Manuel Constantino! Ou, mais propriamente, M. Constantino, de Almeirim!
Levantei-me com um pulo de entusiasmo, e exclamei com alegria:
- Ei! Grande amigo! Que prazer em ouvir-te! Ansiava conhecer a tua voz, que a tua caligrafia já me é familiar. Tenho dezenas de missivas tuas, em arquivo.
- Igualmente! Isso mesmo acontece comigo! – respondeu com notória satisfação. – Quis fazer-te uma surpresa, que me dará imenso prazer. Vim numa missão de serviço à tua cidade, e não posso perder a oportunidade de te conhecer pessoalmente, e trocarmos aquele abraço que já tantas vezes expressámos no papel. Temos muito que ver, falar e relembrar, das nossas interessantes e fraternas lutas policiárias! E das histórias da vida…
Informou-me que estava em serviço na “Repartição de Finanças”, ali ao lado do “Governo Civil”, mas que a partir das cinco horas da tarde, já nos poderíamos encontrar.
As Finanças situavam-se próximo do meu local de trabalho, e às dezassete e dez, aproximei-me do edifício, onde já me esperava, no limiar da porta, o másculo ribatejano, de patilhas fartas, que eu já vira em fotografia, publicada numa conhecida secção policial.
O Constantino também terá imediatamente deduzido, que o rapaz que se aproximava na sua direcção, era o James. Porque ele, sorridente, abandonando a soleira da porta, já caminhava para mim. Abraçámo-nos sem dizer palavra, calados pela alegria e emoção do encontro, mas logo recobrámos a voz, e nos familiarizámos com os mútuos sotaques de pronúncias acentuadamente diferentes.
Instalámo-nos numa esplanada dum café próximo, tomando uns refrescos e saboreando algumas peças do doce tradicional da terra. E, até à despedida para jantar, foram mais de duas horas de agradável cavaqueira. Falou-se da vida profissional, da pessoal, e sobretudo das entusiásticas actividades policiárias, que ambos desenvolvíamos em diversas das secções existentes na imprensa diária lisboeta, e nos semanários regionais.
M. Constantino, então com o cargo de Inspector de Finanças, estaria ali, na minha cidade, pelo menos uma semana, procedendo a investigações profissionais. Fora das horas laborais, teríamos todo o tempo disponível, e logo estabelecemos a agenda dos nossos futuros encontros, também para visitas aos pontos mais típicos da cidade e dos arrabaldes, com atractivos lugares turísticos, sem igual na paisagem do litoral lusitano.
Apresentei-lhe algumas amigas e amigos que foram aparecendo pela esplanada. Eram jovens como nós, praticantes de artes e letras, e com quem desde logo, entre eles e o visitante, se notou uma evidente empatia, motivadora de interessantes conversas.
Mas, no dia seguinte, foi ele, atraente forasteiro, bem vestido e bem colocado na vida, quem me apresentou as mais vistosas e apetecíveis moçoilas, que conhecera nas salas e nos corredores da “Pensão Dona Zita”, onde estava instalado. E a esse já notável conjunto, acrescentou-lhe ainda algumas colegas de trabalho. Nas Finanças, não faltavam giríssimas contabilistas e dactilógrafas. E foram duas dessas, a Cristina e a Laurinda, que se tornaram as nossas principais companheiras, nas caminhadas turísticas e culturais, naquele curto mas agradável e plenamente preenchido, período de prazer e ócio.
Chegou, o antepenúltimo dia daquela saborosa estada do Constantino. No nosso passeio de fim de tarde, acompanhados das duas jovens que nos eram mais constantes – a Laurinda e a Cristina – quando passávamos junto da “Praça do Peixe”, um conhecido e típico marisqueiro da zona, veio aliciar-nos com uma apetitosa cesta de camarões, recentemente apanhados e já preparados para consumo, a um preço deveras tentador.
            O Constantino olhou para as moças, para os camarões e para mim, com um enigmático piscar de olhos. Depois, voltou a olhar para o rapaz que continuava a segurar na sua frente o cheiroso marisco, levou a mão à algibeira do casaco, e pagou de imediato o lote de camarões, acrescentando mais umas moedas para poder ficar com a embalagem.
            - Maravilha! – exclamou ele, lançando às jovens um olhar convidativo. – Agradável companhia! Camarões apetitosos! – e virando-se para mim. - James, tu que conheces a zona, vai em busca de meia dúzia de carcaças, umas tantas cervejas, e alapamo-nos numa das mesas de pedra do jardim, para nos regalarmos com um farto lanche ajantarado.
            - Isso é que era bom! – interrompeu a Laurinda. – Seria maravilhoso, mas temos que estar na pensão antes das sete, por que a minha madrinha vai-me telefonar de Paris.
            - Mas… realmente esses camarões, estão mesmo a querer saltar-nos para a boca! – adiantou a Cristina, com um ar malicioso. – Vocês podem oferecer-nos uma porção desses bichinhos apetitosos, e nós vamos dar cabo deles, mesmo no sossego da nossa sala comum.
            E assim foi. Comprei meia dúzia de “pães da avó”, seis cervejas, e pedi uns sacos de plástico, para dividir os crustáceos e embalar duas garrafas para as nossas amigas. E não me esqueci de comprar guardanapos de papel e toalhetes, levemente perfumados, para, no fim da comezaina, procedermos às necessárias limpezas pessoais e ambientais.
Quando voltei para junto do trio, já o Constantino tinha definido, com as raparigas, o programa para o resto do dia. Ele e eu, depois de acompanharmos as raparigas ao “hotel”, realizaríamos o nosso “pic-nic” num banco do jardim próximo. Mais tarde, cerca das oito e meia, reencontrar-nos-íamos na porta da “Pensão Dona Zita”, e caminharíamos até ao Cine Teatro Avenida, onde se exibia o filme: “A mulher que viveu duas vezes”.
Após uma paragem próximo da “Drogaria Moderna”, onde a Cristina, com um certo ar de mistério, entrou a comprar um produto, cuja natureza não nos revelou, mas  trouxe num saco publicitário do estabelecimento, deixámos as raparigas, na companhia de um cento de camarões e duas garrafas de cerveja, na entrada do seu alojamento. Situava-se, este, num grande e característico edifício da cidade, com a fachada revestida de azulejos, com painéis temáticos, representando as quatro estações do ano.
Então, tomámos o caminho do sítio apropriado para o nosso repasto, não muito longe dali. Sentámo-nos a uma mesa de granito, para apoio aos turistas, no jardim público do município, mesmo ao lado do coreto, e estendemos o farnel.
Mau grado a ausência das companheiras, foi uma agradável refeição ao ar livre, com o saboroso mastigar do rosado alimento, que cada um de nós descascava e regava a seu gosto, com a refrescante e saborosa cerveja bebida pelo gargalo. Em alegre convívio, com antevisões hipotéticas para o final de noite, recordações do passado e projectos para o futuro, deglutimos o petisco, ao longo duma vagarosa hora, tendo o cuidado de guardar o vasilhame e as cascas dos camarões, utilizando um dos sacos esvaziados, para não conspurcar o local, e levar os detritos para o recipiente destinado ao lixo, onde também abandonámos os guardanapos de papel e os toalhetes utilizados.
            Às oito e meia - ou, mais correctamente, vinte e trinta - já o M. Constantino e eu aguardávamos as raparigas na portaria do monumental edifício. Vimos, através da vidraça da porta, que elas se aproximavam, e quando chegaram à rua ficámos ambos intrigados e preocupados com o aspecto da Laurinda. O seu rosto tinha uma cor doentia, de um pálido esverdeado, como se estivesse agoniada. Vinha caminhando tropegamente pelo braço da colega. Deu mais alguns passos inseguros, fraquejaram-lhe as pernas, e se o Constantino não a tivesse puxado contra o seu corpo, ela ter-se-ia estatelado na pedraria do passeio.  
            Julgámos, inicialmente, que a indisposição da rapariga se devesse ao consumo de cerveja, que teria servido para acompanhamento do marisco. Mas a Cristina esclareceu, de imediato, que fora ela quem esgotara as cervejas. A Laurinda, não estava de modo algum etilizada. Não gostava de bebidas alcoólicas, e por isso acompanhara os camarões, somente  com abundante sumo de laranja.
            Ouvindo isto, o Constantino, que até ali só tentara acalmar a debilitada amiga, esfregando-lhe os pulsos e o rosto, e aligeirando-lhe o aperto da gola, deu um grito de desespero, ao mesmo tempo que inclinava a rapariga para a valeta e lhe metia dois dedos pela boca dentro, para lhe provocar um vómito. A nossa amiga teve dois ou três estremecimentos de agonia, e por fim expulsou, em sequência, alguns jactos de um líquido espesso e avermelhado, de cheiro desagradável.
            Agora algo mais tranquilo pelo resultado da sua actuação, mas ainda ciente da gravidade do estado da colega, Constantino gritou-me com vivacidade:
            - Rápido, James! Pede ajuda! É forçoso correr para um hospital!
            Não precisei que ele repetisse o apelo. Sabendo que eu apenas serviria para atrapalhar os primeiros socorros do meu amigo, corri para o Quartel dos Bombeiros, que se localizava a não mais de duzentos metros, no quarteirão que ladeava o jardim.
O Saul, que escutou os meus berros, e leu nos meus olhos a aflição que me fizera correr tão desalmadamente, gritou pela presença dum enfermeiro, saltou para o volante da ambulância e, com a anuência do chefe, indicou-me o lugar a seu lado. Em breves minutos chegámos ao local onde o Constantino, prosseguia com manobras que provocassem a reacção da Laurinda, que embora tivesse já, pela imundice que se via no chão, posto fora todo o conteúdo do estômago, continuava com uma cor desagradável, anormal e doentio.
            Contrariando as instruções do voluntário que queria que a doente fosse deitada na maca, o Constantino preferiu que fosse sentada a seu lado, com o tronco flectido, na esperança de que novos vómitos expulsassem todas as partículas do alimento que provocara aquela malfadada crise. A Cristina, frente a ela, segurava as mãos frias da sua amiga, massajando-as suavemente, e proferindo algumas frases de preocupação e carinho.
            O Hospital não estava muito longe, e em cinco minutos chegámos à “Recepção” das “Urgências”. Rapidamente, a equipa médica tomou conta da paciente. A partir daquela porta, ela já não precisaria de nós. Mas a amiga da Laurinda, foi solicitada para as informações protocolares, acompanhando-a até ao interior das “Observações”, para fornecer a identificação da doente e relatar em pormenor, os motivos da ocorrência.
            Durante cerca de uma hora e meia, o Constantino e eu esperámos nervosamente, impotentes, reflectindo sobre as mais recentes três horas da nossa existência, e vaticinando sobre o futuro próximo que, no dizer do meu amigo, se apresentava algo nebuloso.
            Por fim, a porta da “Recepção”, que felizmente se mantivera pouco activa, abriu-se para dar passagem à Cristina. Vinha acompanhada dum polícia que prestava serviço no “Hospital”, o que, em princípio, nada tinha de anormal. Mas, aquele rosto sempre gracioso, apresentava-se com um aspecto nitidamente choroso, mas ela logo tentou sossegar-nos:
            - A Laurinda está livre de perigo! O médico que a atendeu já vem falar convosco, num “gabinete reservado”, para onde este senhor guarda nos irá acompanhar. O mais estranho, é que o doutor me disse que chamou a Polícia Judiciária, que vem a caminho!
            - É verdade! – corroborou o agente. – Desculpem, mas há um mistério qualquer que precisa de ser esclarecido. Foi chamado o Inspector Palaló, e os senhores terão que aguardar a sua chegada, para serem submetidos a um pequeno interrogatório.                                   
            - O quê?! – perguntei intrigado. – A Judiciária?! Um interrogatório?!
            O Constantino, que ouvira tudo aquilo com um ar calmo, aparentemente abstracto, mas parecendo senhor da situação, deu-me no ombro uma pancada significativa e disse:
            - Amigo James, não te preocupes. Vais ver que tudo se esclarecerá plena e rapidamente. Já tenho uma firme ideia sobre os acontecimentos. – fez um sorriso, discreto, mas bastante expressivo e rematou: - O que importa… é que a Laurinda vai ficar boa!
            Efectivamente, de seguida, os esperados acontecimentos precipitaram-se. Poucos momentos depois de sermos introduzidos no “gabinete reservado”, entraram seguidamente o doutor e o inspector. Apresentaram-se e cumprimentaram-nos cordialmente. Depois de nós dizermos quem éramos, o que fazíamos e por que motivo estávamos ali, o doutor iniciou a conversa, duma forma serena, esclarecida e convincente:
            - Meus senhores, a doente que vocês acompanharam, a menina Laurinda, está livre de perigo. Fizeram-se as indispensáveis análises, foi medicada, e neste momento é lhe ministrado o soro conveniente. Mas o mais grave, é que ela foi vítima de envenenamento. Por esse motivo, foi indispensável e obrigatória, a participação à Polícia Judiciária. Ela tinha uma pequena quantidade, felizmente pequena, de arsénico no sangue. É evidente que se procedeu de imediato a uma lavagem ao estômago, que não resultou absolutamente conclusiva, por ausência quase absoluta de restos alimentares sólidos, tendo sido observadas apenas, migalhas dum alimento que o analista identificou como sendo de camarão, e uma certa percentagem de vestígios de vitamina C.
            Trocando discretos olhares com o médico, foi a vez do inspector se pronunciar, com firmeza, duma forma serenamente regulamentar, precisa e metódica:
            - Meus senhores… e minha senhora! Na certeza, evidente, da existência de arsénico no sangue da vítima, resulta, de forma categórica, que ela foi alvo duma tentativa de envenenamento criminoso, ou teve a tentação de pôr termo à vida. Compete-me, portanto, esclarecer com verdade, e sem qualquer margem para dúvidas, de que forma o arsénico entrou no sangue da vossa amiga. E para isso, preciso da vossa ajuda.
            Com um sinal gestual ao inspector, como que a pedir permissão para falar, o clínico estendeu sobre a mesa uma folha de relatório, e declarou:
            - Ao que sei, pela voz da vossa amiga aqui presente, um dos senhores teve uma actuação essencial para o salvamento da doente. Fazê-la vomitar o mais rapidamente possível, após a ingestão do veneno, foi decisivo para o salvamento da sua vida. – e voltando-se para nós inquiriu: - Qual de vós foi o herói?
            - Herói, coisa nenhuma, senhor doutor! – adiantou o Constantino com toda a clareza: - Quando a amparei e soube de que se alimentara, pensei logo numa possível intoxicação e, para isso, o indicado era o que fiz… e qualquer outro poderia ter feito!
            - Meus amigos! – atalhou o inspector: - O que está feito, feito está! Mas a verdade, é que houve um envenenamento, e torna-se necessário esclarecer o mistério: - e com a entoação adquirida nos longos anos de prática, proclamou: - Crime ou suicídio?!
            Olhando o veterano inspector, com um olhar amigável mas firme e convicto, o Constantino, jovem perito em finanças, com uma voz inflexível e bem modulada, todavia doce e terna, como se ao seu respeitável avô se estivesse a dirigir, começou:
            - Senhor inspector Palaló! – e pronunciou este “Palaló” com uma certa emoção na voz. - Talvez eu possa ajudar a fazer luz sobre o misterioso assunto. É que, quanto a mim, não são duas… mas sim, três, as possíveis alternativas: crime, suicídio ou acidente?!
- Como assim? – alterou-se o experiente inspector.
- Eu vou continuar, se me permite! – interrompeu o Constantino: - Que eu saiba, a Laurinda, por aquilo que nos últimos dias conversámos, jamais, por motivo algum, atentaria contra a própria vida. Eu não me quero intrometer no seu melindroso trabalho, inspector, mas, se me quiser acompanhar ao lugar onde forcei a rapariga a vomitar, e se o doutor nos acompanhar ou mandar alguém, com um recipiente próprio para a colheita de vestígios, talvez os serviços de patologia, esclareçam, pronta e capazmente, o imbróglio da hipotética tripla dúvida, crime, suicídio ou acidente.
O inspector trocou algumas palavras com o médico, e este mandou chamar um técnico analista, para os acompanhar ao local indicado e proceder à sugerida colheita.
            Em menos de vinte minutos, regressava o carro de serviço com o pessoal que se havia deslocado a entrada da “Pensão Dona Zita”. E, meia hora depois, já se conhecia o resultado da análise àquele malcheiroso produto, aliás condizente com o resultado das análises elaboradas após a lavagem ao estômago.
            Havia realmente arsénico, naquela mistura de restos de camarões meio digeridos e sumo de laranja com suco gástrico.
            Tudo voltava ao ponto de partida. Houvera envenenamento. E mantinha-se a enigmática dúvida: crime ou suicídio? A que o Constantino teimava em juntar: Acidente!
            Com um leve toque no cotovelo da Cristina, sugeri-lhe que se afastasse um pouco para me escutar, e discretamente disse-lhe:         
            - Minha querida, eu sei que não tens qualquer tipo de animosidade pela tua amiga, que te pudesse levar a cometer algum acto menos digno. Mas, as investigações concluirão que tu foste à drogaria, e vão querer saber o que compraste. – e perante o seu espanto, acrescentei sorrindo: - Terá sido arsénico?!
            - Tens razão, James. – Atirou-me com um ar de irónica animosidade. - Vou já pôr esse melindroso assunto em pratos limpos. – E, voltando-se para o grupo de entendidos que conversavam, observando e comentando as incidências do caso, aclarou a voz e disse: 
            - Se me permitem, devo desde já esclarecer que, quando vínhamos a caminho da pensão, eu entrei na “Drogaria Moderna”, mas não foi para comprar qualquer tipo de drogas. Se forem investigar, como certamente irão, serão informados de que apenas comprei um produto descartável, de higiene íntima e periódica. – Todos nos entreolhámos e sorrimos, pela forma como a moça, desenvolvera, duma forma bastante esclarecedora, a natureza da misteriosa compra efectuada.
            O inspector consultou a lista, pegou no telefone e ligou para o estabelecimento comercial referido, mas ninguém atendeu. Estava encerrado, sem dúvida. Esse pormenor seria aclarado no dia seguinte. E mantinha-se o mistério: crime ou suicídio?
            Mas Manuel Constantino, que expressara de forma mais visível, a apreciação ao esclarecimento da Cristina, pediu ao doutor Luciano que nos levasse para um lugar mais sossegado, pois sabia e queria explicar de forma peremptória, o que afinal se passara para provocar o envenenamento da Laurinda, pois defendia, a pés juntos, a versão de acidente.
            O inspector lançou-lhe um olhar de admiração e indisfarçável despeito, mas fez ao clínico um gesto de concordância, dizendo:
            - Vamos a isso, doutor! Este jovem parece-me bem esclarecido… e ousado, pronto para ocupar o meu lugar. Deixemo-lo expressar-se. Estes jovens aprendem muito na literatura policial, e a brincar aos detectives nas secções policiárias.
            De seguida o médico conduziu-nos ao seu gabinete, ocupando o lugar habitual de trabalho, e indicando-nos as cadeiras disponíveis.
            - Vamos a isto, doutor! – Disse o Constantino, sorrindo. – A Laurinda não ingeriu, nem foi forçada a ingerir, “arsénico”. O “arsénico” foi produzido no seu estômago. Em ocasião e publicação que por agora não saberei especificar, mas num artigo científico de que guardo alguma memória, fiquei a saber que, na realidade, o camarão contém uma concentração de compostos de “potássio-arsénico 5”, que por si só não são tóxicos. – ele terá reparado na estupefacção dos circunstantes, à excepção do médico, que parecia seguir com interesse a sua explanação, e após uma imperceptível pausa para respiração, prosseguiu: - O inicialmente não tóxico ”potássio-arsénico 5”, existente nos camarões, em mistura com a vitamina C, converte-se no tóxico “potássio-arsénico 3”, anidrido arsénico, também designado, se a memória me não falha, por “trióxido de arsénico”, vulgarmente conhecido como o venenoso “Arsénico”. Resulta, dessa curiosidade científica que eu talvez não esteja a descrever com todo o rigor, não é recomendável comer mariscos acompanhados por laranjas, sumo de laranjas ou vitamina C. Portanto, quanto a mim, e o inspector certamente vai desenvolver as convenientes investigações, posso declarar, com toda a convicção. Não houve crime! Nem houve tentativa de suicídio! O que aconteceu, foi um lamentável acidente, que não ocorreria, se a Laurinda se tivesse empanturrado de camarões na minha presença. Não a deixaria adulterar essa apetitosa iguaria, ingerindo conjuntamente copos de sumo de laranja, que contém grande quantidade de vitamina C.
Eu olhava o Constantino de soslaio, pasmado, mas ele sorriu-me e continuou:
- Quando a Laurinda surgiu à porta da pensão, de cor alterada, amparada pela Cristina e me ia a desfalecer nos braços, pensei que isso se deveria ao mal-estar provocado pela bebida, que eu julgava ter sido cerveja. Mas, quando a Cristina nos disse que a Laurinda não gostava de bebidas alcoólicas e que acompanhara os camarões só com sumo de laranja, recordei-me daquele artigo, e tive a percepção de que deveria fazê-la vomitar, numa tentativa para que expulsasse, do organismo, aquela mistura intoxicante.
            - Realmente! – atalhou o médico – Isso é cientificamente conhecido, e o “Hospital”, com base nos conhecimentos, declarações e análises de que agora dispomos, irá proceder à elaboração do conveniente relatório de medicina legal, para esclarecer o sucedido..
            - Quanto a mim – adiantou o respeitável inspector Palaló. – Admito e aceito as achegas deste jovem – e acrescentou com certa ironia – “sherlock”! O doutor sorriu e pronunciou-se com admiração, pois conhecia a veracidade da teoria expendida pelo Constantino. Pediu-nos licença, pois necessitava de ir confirmar o actual estado da enferma. Voltou dez minutos depois, com a agradável notícia de que a Laurinda ficaria naquela noite a repousar num quarto particular, onde desde já a poderíamos visitar, e que teria alta a partir das dez horas da manhã que se aproxima.
            Fomos saudá-la, e no dia seguinte já podemos acamaradar como era costume.
            Mas chegou o dia das despedidas. Acompanhámos o Constantino à estação do Caminho-de-Ferro. Vocês sabem, ou imaginam, o que é habitual nestas circunstâncias.   
            Demonstrámos a nossa sincera amizade pelo amigo que ia regressar ao seu querido Ribatejo. E antes que a porta da carruagem se fechasse, ele ainda nos gritou com um certo timbre, já de sentida nostalgia, na voz:

 - Lembrem-se de mim! “QUEM RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ!”                                                                            

JARTURICE 180

Bom dia, Amigos.

     Estou a tentar arrumar o meu "escritório/oficina/estaleiro/arquivo/lixeira", utilizando o sistema
que o M. Constantino aconselhou a um funcionário, no seu livro: UM COFRE ESCANCARADO.
     Querem saber como é? Ora vão lá ler... Se ainda não tem esse livro, comprem os dois... e há mais do autor!...
     ... Eis senão quando, deparei com uma dezena de recortes da série «BRUCE KENT convida-o a descobrir a pista». 
São problemas policiais, propostos em uma "prancha de banda desenhada", geralmente com doze "vinhetas".
Próximo do fim, o autor pergunta: «Já descobriu o enigma?»... e passa a expor a solução. Os desenhos são bons.
     Essa série, morou n' «O Primeiro de Janeiro», aos Domingos, alternando com outras várias séries policiais, nos anos de 1964 a 1967. Publicaram-se ali coisas muito interessantes, para além dessa: «O INSPECTOR LADINO», também em banda desenhada, de menor formato, com apenas duas "tiras". Mas há mais, de que eu tenho dezenas de recortes, alguns com ilustrações, e de que tentarei fazer levantamento integral: «Decifre o mistério»; «Descubra a pista»; «Descubra o mistério»; «Dois minutos de mistério»; «Minimistério»; «O leitor resolve o crime»; «Será o leitor um bom detective»; «Será o leitor um moderno Sherlock Holmes». Algumas, eram a mesma série, apenas com... mudança de título. Vocês verão... talvez antes do Inverno. Por agora, aproveitem o bom tempo. E se na terra onde estiverem, houver uma Biblioteca Pública Municipal, nas horas do Sol prejudicial, refugiem-se lá, e recreiem-se...
brincando aos  Detectives.
     Abraços do Jartur


PROBLEMAS POLICIAIS – 183 - # 180
                         (Diário Popular # 5414 – 02.11.1957)


De visita ao Brasil, o inspector Fauvel foi convidado para esclarecer um mistério que havia quatro meses desafiava os mais hábeis investigadores. Passara-se na floresta. Quatro franceses e um brasileiro haviam partido do Natal em busca de uma planta que podia fornecer borracha. Um dia apareceu um indígena a dizer que descobrira na floresta cinco cadáveres, um dos quais em adiantado
estado de decomposição.

Junto, achara um papel que entregou às autoridades. Fauvel leu esse documento escrito em francês e no qual faltavam algumas palavras.
        
         «Vou morrer. Sei-o bem. Se eu conhecesse algum remédio contra este mal, ou se eu soubesse rezar… adeus… os outros morreram também… As febres… Isto não é um testamento pois nada possuo. As feras, toda a noite… Horror…»
        
         Não estava assinado.
        
         Fauvel soube que os cinco homens eram: o professor Paul Durand, botânico; o milionário Jean Morand, que dirigia o grupo; o missionário Armand Carton, conhecido explorador; o doutor Remi Grand e o coronel Ramon Resitulio, do Exército Brasileiro. Havia interesse em saber quem era o autor da mensagem.

         Fauvel esclareceu isso em poucos minutos.

         Quem era o autor da mensagem?    



     (Divulgaremos amanhã, a solução oficial deste caso)

  *     *     *     *     *










Solução do problema # 179
(Diário Popular # 5407 – 26.10.1957)

Se se tivesse tratado de um suicídio, o tio de Jacques nunca teria podido fechar a porta da cozinha por fora. Jacques matara o tio antes de Maurice vir buscá-lo às 20 horas. Inventou então que o tio o chamava para que isso pudesse servir-lhe de álibi.

Jarturice-180 (Divulgada em 30.Junho.2015)









APRESENTAÇÃO
E
DIVULGAÇÃO
J A R T U R
jarturmamede@aeiou.pt 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO

MANUEL BOTAS CONSTANTINO
AMANHÃ, APÓS A PUBLICAÇÃO DA JARTURICE N.º 180, TEREMOS AQUI MAIS UMA MENÇÃO HONROSA ATRIBUÍDA PELO JURI, PRECISAMENTE A UM CONTO DE AUTORIA DO CONFRADE JARTUR, COM O TÍTULO "QUE TREMENDA MARISCADA!"

ATÉ AMANHÃ!

JARTURICE 179


Bom dia, Ilustres Amigos:
Estou a aperceber-me, que estas (às vezes nem tão curtas) mensagens, com que faço
a entrega das «Jarturices», tem bastante interesse para a maioria dos...  "Jarturicistas".
(Não tem significado, mas vocês sabem perfeitamente o que significa. Não sigo o "NAO",
mas aceito que o nosso  idioma é uma língua viva, que pode aceitar sem qualquer rebuço,
a nossa criatividade respeitosa e bem intencionada. Corrija-me quem achar o contrário. 
Em conformidade, de futuro, quando tiver que reenviar alguma "Jarturice" que me seja
solicitada, fá-lo-ei com o acompanhamento da "guarnição".
E agora, respondendo ao Álvaro Holstein e ao Geraldes Lino, devo informar que o Saul,
não decidiu ainda as datas para a realização do III SALÃO DE BANDA DESENHADA DE
AVEIRO, porque  tem ainda muito trabalho pela frente, é só ele a preparar o inúmero material 
gráfico, não tem patrocínios, e algumas entidades contactadas para possíveis cedências,
não se dignaram ainda responder. Ao que ele me disse bastará, depois de tudo em ordem,
participar as datas ao MUSEU DE AVEIRO, que lhe cederá a sala já determinada.
Ainda ontem vi, a grande quantidade de placas, cartazes, montagens e reproduções de páginas,
vinhetas e pranchas, que ele tem desenhado e pintado com toda a sua arte e carinho.
O tema, creio ter esclarecido em mensagem anterior, será o jornal da nossa meninice:
«O MOSQUITO»! Eu sugeri, e ele já tinha pensado nisso, que um período óptimo para
a "festa", seria o que contivesse a data de celebração de mais uma nobre efeméride.
«O MOSQUITO» veio ao mundo, em 14 de Janeiro de 1936.
Abraços para todos do "Mosquitista"
Jartur.


 PROBLEMAS POLICIAIS – 182 - # 179

                         (Diário Popular # 5407 – 26.10.1957)

Maurice Levant parou o seu carro diante do prédio n.º 62 da Rua Saint-Léger e tocou o «claxon». Eram 20 horas. Pouco depois, Jacques Dubois descia as escadas.
«Bom dia Jacques.».
«… Bom dia Maurice. Eu… um momento, o meu tio chama-me. Vou ver o que ele quer».
«É curioso – notou Jacques, quando subia para o automóvel, alguns minutos mais tarde. «Meu tio insiste em que volte aqui esta noite, em vez de ficar em minha casa. Não me quis dizer porquê… Ainda uma das coisas dele… Tu conhece-lo…».
Às duas da madrugada o agente Moreau, precedendo o inspector Fauvel, entrava na residência do tio de Jacques. Maurice e Jacques esperavam no vestíbulo.
Primeiro, o inspector Fauvel dirigiu-se ao segundo andar. Alguns instantes depois descia até à cozinha. Deu volta à chave da porta da cozinha e entrou.
Com a cabeça sobre uma almofada, caído por terra, o tio de Jacques, junto do qual se via um revólver, tinha um buraco na testa. Embora a telefonia estivesse ligada apenas deixava ouvir um ruído enervante. Tomou nota da posição da agulha no quadrante do aparelho de rádio e comunicou a Jacques a notícia da tragédia.
Jacques disse:
«… Foi então que voltei. Era uma e meia da manhã e convidei Maurice para beber mais um copo. Como não abrissem a porta, tive o pressentimento de que alguma coisa sucedera e chamei a Polícia. Mas porque é que o meu tio teria feito isso?».
«Não foi ele quem o fez», disse o inspector. «Ele foi assassinado. Tenho pena, mas devo prendê-lo».

Como é que o inspector Fauvel descobriu que Jacques assassinara o tio?


         (Divulgaremos amanhã, a solução oficial deste caso)


  *     *     *     *     *
 







Solução do problema # 178
(Diário Popular # 5400 – 19.10.1957)

A faca de caça de Olivier, encontrava-se na sua bainha.

 Jarturice-179 (Divulgada em 29.Junho.2015)






APRESENTAÇÃO E DIVULGAÇÃO
DE: J A R T U R
jarturmamede@aeiou.pt


domingo, 28 de junho de 2015

"A PRIMEIRA VEZ" - ORIGINAL DE DETECTIVE JEREMIAS

CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO

{MENÇÃO HONROSA. 
AUTORIA: "DETECTIVE JEREMIAS, QUE ASSINOU O TRABALHO COMO "ESPIÃO"}


A PRIMEIRA VEZ

Pseudónimo: ESPIÃO

o conto, pela sua dimensão peculiar, tem de encerrar a sua unidade de efeito, isto é, tem de produzir um efeito narrativo, ênfase, com economia de palavras. Cada palavra deve contribuir para o efeito final.
M. Constantino
“O Conto como Expressão Literária”



Lisboa, 1941. Em plena guerra mundial, Lisboa vive dias singulares. Inundada por vagas de estrangeiros – refugiados ou simples aventureiros – numa Europa destruída e insegura, a capital de um pequeno país, hipocritamente neutro, é uma porta para a esperança.
Por todo o lado, − ruas, jardins, hotéis, cafés, esplanadas e lojas − milhares de pessoas compõem uma invulgar teia multicultural, com uma babel linguística como pano de cena.
Em Lisboa misturam-se nacionalidades, credos e religiões. As práticas trazidas pelos estrangeiros alteram o quotidiano, fazem cair tabus e levam a uma mudança de mentalidade nos alfacinhas, pelo menos a julgar pelas aparências.
Cruzam-se os tempos difíceis com as oportunidades de ouro. A miséria e a fome convivem com a riqueza e com os restaurantes de luxo. Os altos funcionários e os diplomatas confraternizam com mercenários e espiões, em obscuros tráficos de influências e de segredos.
Quase ninguém é quem parece ser.
Uns estão preocupados em não deixar transparecer alguma particularidade que denuncie origem, fortuna, religião ou cor política. Outros vão mais longe e aplicam finos truques de camuflagem: os mais ricos vestem-se de forma mais discreta para não atrair os amigos do alheio, e os mais modestos ostentam riquezas, que não possuem, para obterem benefícios.
É neste agitado ambiente cosmopolita que Margaretha vive o seu dia-a-dia, tenta construir o seu futuro e concretizar os seus sonhos. A jovem, apesar do nome e do aspecto nórdico, não anseia embarcar para a América e nem sequer é refugiada.

*****
Como, quando e porquê Margaretha veio parar a Lisboa?



                                                                                                                                                                                      
Eis aqui então a história passada de Margaretha, recheada de acasos e que se conta em duas penadas.
O pai era não só muito inteligente e um músico exímio, mas também um homem muito à frente do seu tempo. Nascido em Portugal, na viragem do século, cedo percebeu que ele e o país não tinham futuro comum. Sem laços familiares fortes, partiu mundo fora, trabalhou, estudou e foi reconhecido internacionalmente pelo seu talento musical. A mãe de Marga, natural de Amesterdão, apesar de muito jovem, era uma jornalista talentosa quando por acaso, se cruzou com um português bem parecido. Apaixonaram-se, casaram e nasceu Marga. Durante vários anos usufruíram dos benefícios de uma vida nómada, com passagem pelas principais cidades europeias, onde se fixaram por períodos mais ou menos longos. Portugal servia apenas como refúgio de férias. Marga cresceu em circunstâncias sociais e culturais peculiares, teve uma educação privilegiada e multifacetada, uma amálgama especial que lhe desenvolveu a mente, contribuiu para um carácter forte e lhe conferiu confiança e autonomia.
Esta realidade de sonho estava destinada a receber um golpe de pesadelo. Os pais de Marga e o seu único tio, materno, morreram num violento desastre ferroviário, deixando-a sozinha, sem familiares ou amigos próximos que pudessem assegurar a sua guarda – a vida errante, como tudo o resto, tem também uma face daninha.
Sem apelo nem agravo, Margaretha viu-se em Portugal numa vila perdida das Beiras, entregue aos descuidados de uma velha prima afastada, seca de carnes e de feitio.
Arrastaram-se quase dois anos, penosos, monótonos, até à altura em que Marga, prestes a fazer dezoito anos, em Agosto de 1940, decidiu mudar-se para Lisboa e procurar trabalho para garantir o pagamento do curso de literatura, um dos seus desejos interrompidos. Deixou para trás o isolamento, a tacanhez e a prima beata, sem saudades de parte a parte.
Na capital conseguiu trabalho facilmente. A Bertrand, no Chiado, sensível à nova clientela internacional, deixou-se cativar pela figura, pela educação e pelos conhecimentos de diferentes idiomas de Margaretha, e esta sentia-se fascinada pelos livros e pela atmosfera cultural e literária da livraria.
Apenas um senão ensombrava o futuro da Marga: o dinheiro que recebia no final de cada mês parecia sumir-se como água entre os dedos, e a concretização do seu futuro como estudante universitária estava comprometida. Era urgente e imperioso arranjar uma saída, um outro trabalho ou actividade que trouxesse uma entrada rápida de capital.
*****
Qual foi a solução encontrada por Margaretha?



Regressemos agora ao presente.
Lisboa, sexta-feira, 4 de Abril de 1941, 8 horas da noite, ainda em plena guerra mundial.
Marga acaba de sair da Bertrand, felizmente não chove e a noite está amena. Sem pressas, apesar de ter os nervos em franja, tenta manter a serenidade, os gestos calmos e uma marcha que não denuncie a sua inquietação e ansiedade.
Marga revê mentalmente instruções, preceitos, aspectos indispensáveis, porém o seu pensamento é um emaranhado e o cérebro parece paralisado. Calma, calma, calma, repete para si, como uma ladainha fracassada.
Na esquina, um longo cartaz colado sobre muitos outros desvia-a da sua preocupação. A figura esguia da vedeta ocupa quase todo o espaço onde se anuncia a “Trindade, Despedida da Formosíssima e Incomparável Josephine Baker, a Alma Ardente da Selva, Hoje às 21 e 45”. Marga esboça um sorriso, o “último espectáculo” da artista tinha sido sucessivamente anunciado, mas havia sempre uma nova sessão no dia seguinte. Estranhamente, ou não, a vista do cartaz tranquiliza-a, tem a consciência que o plano está arquitectado com cuidado. O local para onde se dirige ficará quase deserto. Dentro em pouco todos iniciarão o jantar e, de seguida, um grande grupo começará a debandada para garantir a chegada com pontualidade no Teatro da Trindade.
De forma mecânica, Marga verifica as horas no relógio pequenino, prenda de “X”, um homem decisivo na sua vida e no seu futuro. Ao pensar nele, deixa-se envolver e levar pela felicidade. Sem deixar de seguir o seu rumo, percorre devagar as ruas da Baixa e recorda com ternura alguns momentos com “X”.
Um dia reparara nele, na Bertrand, pela primeira vez.
Mais tarde Marga surpreendeu-se ao saber que “X” era cliente diário da livraria, mas a forma subtil como ele cultivava o anonimato – uso de óculos para esconder o olhar perspicaz, roupas neutras, pose monótona – tinham-no tornado invisível até aquele dia.
Trocaram opiniões e ideias no início do ano, durante a première do filme Rebecca, um sucesso de Hitchcock que, de acordo com os jornais, tivera estreia europeia em Lisboa.
Mais tarde, Marga ficara surpreendida de novo ao ter conhecimento que fora “X” a planear tudo quando entregara na Bertrand dois bilhetes, para Marga e outra colega, como “Oferta de um cineasta”.
Conheceram-se, fortaleceram laços e cumplicidades até que “X” abriu o jogo e lhe lançou um desafio aliciante, irrecusável e rentável. Seguiu-se o treino intenso de Marga durante semana.
E saliente-se aqui, em abono da verdade, que foi a vez de “X” ficar espantado com a rapidez de raciocínio, a memória e a perspicácia da jovem.
*****
Dentro de uma hora terá lugar a sua primeira vez.

Marga faz um esforço para voltar a realidade. Sabe que tem de estar concentrada. Tenta relembrar todos os passos para que nada fique esquecido. Ela sabe que fora escolhida, mas que escolhera também. Ela e “X” estão sozinhos e por conta própria. Têm autonomia que garante a ausência de traições e é mais lucrativa.
Conforme planeado Marga segue pela Rua do Príncipe, menos movimentada, para aceder à entrada no Grande Hotel de Inglaterra, nos Restauradores. A escolha deste hotel fora exemplar. Os hotéis de Lisboa são ninhos de redes de espionagem que “X” conhece como a palma das mãos. Espiões, espiões duplos e triplos acoitam-se em verdadeiros quartéis-generais conotados com os aliados ou com os alemães. O Avenida Palace, frente ao hotel onde Marga pretende entrar, tem até no último andar uma passagem directa para estação do Rossio, facilitando o trânsito de espiões e dificultando fiscalização da polícia. O Grande Hotel de Inglaterra, onde “X” se instalou como hóspede, não é dos mais badalados, mas tem os personagens ideais para o fim em vista.
Antes de entrar Marga, observa-se reflectida num vidro: vestuário sóbrio, cara serena, cabelos loiros vistosos, devidamente tapados com um chapeuzinho vulgar, em suma, um aspecto anónimo como convém.
Marga entra confiante, como se fosse uma frequentadora regular, aproveitando a ausência do porteiro para o habitual cigarro em alturas de pouco movimento. A entrada está deserta, já saíram todos para ver a Baker. Ao passar pelo sonolento recepcionista, Marga atira um  “Boa noite… Bar” como se fosse para um encontro amoroso clandestino ou tomar uma bebida inadiável. Mas dirige-se ao ascensor onde entra sozinha, sem esperas.
Apesar da tensão, pela segunda vez esta noite Marga esboça um sorriso perante um cartaz: o Grande Hotel de Inglaterra, em Lisboa, anuncia com destaque, e sem qualquer pudor patriótico, a excelente “Cuisine Française” do seu serviço de restaurante e realça ainda que é recomendado pela “Propaganda de Portugal”.
Marga sai no segundo piso. Na mesinha do átrio de acesso aos quartos, a mais recente revista “Mundo Gráfico” mostra um latoeiro, a fotografia que ganhou o primeiro prémio do concurso. Na contracapa da revista, em baixo, uma frase manuscrita em letra bem desenhada, é o sinal deixado por “X” para a missão prosseguir: "QUEM RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ".
Mais nada, nem códigos, nem números de quartos, nem informação sobre locais a vasculhar. Marga tem tudo bem memorizado: trinta e três quartos, cinquenta e sete esconderijos. Cerca de três horas a trabalhar para conseguir uma fortuna excepcional, merecem qualquer risco.
Corada devido à excitação, Marga retira com cuidado, dos cabelos, um gancho fino especial − a chave mestra para aceder aos quartos. Respira fundo, introduz o gancho na fechadura da porta e entra facilmente − fruto da habilidade e do treino.

Marga inicia, aqui e agora, um part-time que lhe garante um futuro desafogado e livre.
Marga inicia, aqui e agora, uma actividade arriscada, digna de um filme de acção.
Marga, ladra profissional, é a partir deste momento especialista internacional em furtos de jóias em hotéis

É a sua primeira vez.