CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO
{MENÇÃO HONROSA.
AUTORIA: "DETECTIVE JEREMIAS, QUE ASSINOU O TRABALHO COMO "ESPIÃO"}
AUTORIA: "DETECTIVE JEREMIAS, QUE ASSINOU O TRABALHO COMO "ESPIÃO"}
A PRIMEIRA VEZ
Pseudónimo: ESPIÃO
… o conto, pela sua dimensão peculiar, tem de
encerrar a sua unidade de efeito, isto é, tem de produzir um efeito narrativo,
ênfase, com economia de palavras. Cada palavra deve contribuir para o efeito
final.
M. Constantino
“O Conto como Expressão Literária”
Lisboa, 1941. Em plena guerra mundial, Lisboa vive
dias singulares. Inundada por vagas de estrangeiros – refugiados ou simples aventureiros
– numa Europa destruída e insegura, a capital de um pequeno país, hipocritamente
neutro, é uma porta para a esperança.
Por todo o lado, − ruas, jardins, hotéis,
cafés, esplanadas e lojas − milhares de pessoas compõem uma invulgar teia multicultural,
com uma babel linguística como pano de cena.
Em Lisboa misturam-se
nacionalidades, credos e religiões. As práticas trazidas pelos estrangeiros
alteram o quotidiano, fazem cair tabus e levam a uma mudança de mentalidade nos
alfacinhas, pelo menos a julgar pelas aparências.
Cruzam-se os tempos difíceis com as
oportunidades de ouro. A miséria e a fome convivem com a riqueza e com os
restaurantes de luxo. Os altos funcionários e os diplomatas confraternizam com
mercenários e espiões, em obscuros tráficos de influências e de segredos.
Quase ninguém é quem parece ser.
Uns estão preocupados em não
deixar transparecer alguma particularidade que denuncie origem, fortuna,
religião ou cor política. Outros vão mais longe e aplicam finos truques de
camuflagem: os mais ricos vestem-se de forma mais discreta para não atrair os
amigos do alheio, e os mais modestos ostentam riquezas, que não possuem, para
obterem benefícios.
É neste agitado ambiente cosmopolita
que Margaretha vive o seu dia-a-dia, tenta construir o seu futuro e concretizar
os seus sonhos. A jovem, apesar do nome e do aspecto nórdico, não anseia
embarcar para a América e nem sequer é refugiada.
*****
Como, quando e porquê
Margaretha veio parar a Lisboa?
Eis aqui então a história passada de
Margaretha, recheada de acasos e que se conta em duas penadas.
O pai era não só muito inteligente
e um músico exímio, mas também um homem muito à frente do seu tempo. Nascido em
Portugal, na viragem do século, cedo percebeu que ele e o país não tinham
futuro comum. Sem laços familiares fortes, partiu mundo fora, trabalhou,
estudou e foi reconhecido internacionalmente pelo seu talento musical. A mãe de
Marga, natural de Amesterdão, apesar de muito jovem, era uma jornalista
talentosa quando por acaso, se cruzou com um português bem parecido.
Apaixonaram-se, casaram e nasceu Marga. Durante vários anos usufruíram dos
benefícios de uma vida nómada, com passagem pelas principais cidades europeias,
onde se fixaram por períodos mais ou menos longos. Portugal servia apenas como
refúgio de férias. Marga cresceu em circunstâncias sociais e culturais peculiares,
teve uma educação privilegiada e multifacetada, uma amálgama especial que lhe
desenvolveu a mente, contribuiu para um carácter forte e lhe conferiu confiança
e autonomia.
Esta realidade de sonho estava
destinada a receber um golpe de pesadelo. Os pais de Marga e o seu único tio,
materno, morreram num violento desastre ferroviário, deixando-a sozinha, sem
familiares ou amigos próximos que pudessem assegurar a sua guarda – a vida
errante, como tudo o resto, tem também uma face daninha.
Sem apelo nem agravo, Margaretha
viu-se em Portugal numa vila perdida das Beiras, entregue aos descuidados de
uma velha prima afastada, seca de carnes e de feitio.
Arrastaram-se quase dois anos,
penosos, monótonos, até à altura em que Marga, prestes a fazer dezoito anos, em
Agosto de 1940, decidiu mudar-se para Lisboa e procurar trabalho para garantir
o pagamento do curso de literatura, um dos seus desejos interrompidos. Deixou
para trás o isolamento, a tacanhez e a prima beata, sem saudades de parte a
parte.
Na capital conseguiu trabalho
facilmente. A Bertrand, no Chiado, sensível à nova clientela internacional,
deixou-se cativar pela figura, pela educação e pelos conhecimentos de
diferentes idiomas de Margaretha, e esta sentia-se fascinada pelos livros e
pela atmosfera cultural e literária da livraria.
Apenas um senão ensombrava o
futuro da Marga: o dinheiro que recebia no final de cada mês parecia sumir-se como
água entre os dedos, e a concretização do seu futuro como estudante
universitária estava comprometida. Era urgente e imperioso arranjar uma saída,
um outro trabalho ou actividade que trouxesse uma entrada rápida de capital.
*****
Qual foi a solução
encontrada por Margaretha?
Regressemos agora ao presente.
Lisboa, sexta-feira, 4 de Abril de
1941, 8 horas da noite, ainda em plena guerra mundial.
Marga acaba de sair da Bertrand,
felizmente não chove e a noite está amena. Sem pressas, apesar de ter os nervos
em franja, tenta manter a serenidade, os gestos calmos e uma marcha que não
denuncie a sua inquietação e ansiedade.
Marga revê mentalmente instruções,
preceitos, aspectos indispensáveis, porém o seu pensamento é um emaranhado e o
cérebro parece paralisado. Calma, calma, calma, repete para si, como uma
ladainha fracassada.
Na esquina, um longo cartaz colado
sobre muitos outros desvia-a da sua preocupação. A figura esguia da vedeta
ocupa quase todo o espaço onde se anuncia a “Trindade, Despedida da Formosíssima
e Incomparável Josephine Baker, a Alma Ardente da Selva, Hoje às 21 e 45”. Marga
esboça um sorriso, o “último espectáculo” da artista tinha sido sucessivamente
anunciado, mas havia sempre uma nova sessão no dia seguinte. Estranhamente, ou
não, a vista do cartaz tranquiliza-a, tem a consciência que o plano está
arquitectado com cuidado. O local para onde se dirige ficará quase deserto.
Dentro em pouco todos iniciarão o jantar e, de seguida, um grande grupo começará
a debandada para garantir a chegada com pontualidade no Teatro da Trindade.
De forma mecânica, Marga verifica
as horas no relógio pequenino, prenda de “X”, um homem decisivo na sua vida e
no seu futuro. Ao pensar nele, deixa-se envolver e levar pela felicidade. Sem
deixar de seguir o seu rumo, percorre devagar as ruas da Baixa e recorda com
ternura alguns momentos com “X”.
Um dia reparara nele, na Bertrand,
pela primeira vez.
Mais tarde Marga surpreendeu-se ao
saber que “X” era cliente diário da livraria, mas a forma subtil como ele
cultivava o anonimato – uso de óculos para esconder o olhar perspicaz, roupas
neutras, pose monótona – tinham-no tornado invisível até aquele dia.
Trocaram opiniões e ideias no
início do ano, durante a première do
filme Rebecca, um sucesso de Hitchcock que, de acordo com os jornais, tivera estreia
europeia em Lisboa.
Mais tarde, Marga ficara
surpreendida de novo ao ter conhecimento que fora “X” a planear tudo quando
entregara na Bertrand dois bilhetes, para Marga e outra colega, como “Oferta de
um cineasta”.
Conheceram-se, fortaleceram laços
e cumplicidades até que “X” abriu o jogo e lhe lançou um desafio aliciante, irrecusável
e rentável. Seguiu-se o treino intenso de Marga durante semana.
E saliente-se aqui, em abono da
verdade, que foi a vez de “X” ficar espantado com a rapidez de raciocínio, a
memória e a perspicácia da jovem.
*****
Dentro de uma hora terá
lugar a sua primeira vez.
Marga faz um esforço para voltar a
realidade. Sabe que tem de estar concentrada. Tenta relembrar todos os passos
para que nada fique esquecido. Ela sabe que fora escolhida, mas que escolhera
também. Ela e “X” estão sozinhos e por conta própria. Têm autonomia que garante
a ausência de traições e é mais lucrativa.
Conforme planeado Marga segue pela
Rua do Príncipe, menos movimentada, para aceder à entrada no Grande Hotel de
Inglaterra, nos Restauradores. A escolha deste hotel fora exemplar. Os hotéis
de Lisboa são ninhos de redes de espionagem que “X” conhece como a palma das
mãos. Espiões, espiões duplos e triplos acoitam-se em verdadeiros
quartéis-generais conotados com os aliados ou com os alemães. O Avenida Palace,
frente ao hotel onde Marga pretende entrar, tem até no último andar uma
passagem directa para estação do Rossio, facilitando o trânsito de espiões e
dificultando fiscalização da polícia. O Grande Hotel de Inglaterra, onde “X” se
instalou como hóspede, não é dos mais badalados, mas tem os personagens ideais
para o fim em vista.
Antes de entrar Marga, observa-se reflectida
num vidro: vestuário sóbrio, cara serena, cabelos loiros vistosos, devidamente
tapados com um chapeuzinho vulgar, em suma, um aspecto anónimo como convém.
Marga entra confiante, como se
fosse uma frequentadora regular, aproveitando a ausência do porteiro para o
habitual cigarro em alturas de pouco movimento. A entrada está deserta, já
saíram todos para ver a Baker. Ao passar pelo sonolento recepcionista, Marga
atira um “Boa noite… Bar” como se fosse
para um encontro amoroso clandestino ou tomar uma bebida inadiável. Mas
dirige-se ao ascensor onde entra sozinha, sem esperas.
Apesar da tensão, pela segunda vez
esta noite Marga esboça um sorriso perante um cartaz: o Grande Hotel de
Inglaterra, em Lisboa, anuncia com destaque, e sem qualquer pudor patriótico, a
excelente “Cuisine Française” do seu serviço de restaurante e realça ainda que
é recomendado pela “Propaganda de Portugal”.
Marga sai no segundo piso. Na
mesinha do átrio de acesso aos quartos, a mais recente revista “Mundo Gráfico”
mostra um latoeiro, a fotografia que ganhou o primeiro prémio do concurso. Na
contracapa da revista, em baixo, uma frase manuscrita em letra bem desenhada, é
o sinal deixado por “X” para a missão prosseguir: "QUEM RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ".
Mais nada, nem códigos, nem números de quartos, nem informação sobre
locais a vasculhar. Marga tem tudo bem memorizado: trinta e três quartos,
cinquenta e sete esconderijos. Cerca de três horas a trabalhar para conseguir
uma fortuna excepcional, merecem qualquer risco.
Corada devido à excitação, Marga retira com cuidado, dos cabelos, um
gancho fino especial − a chave mestra para aceder aos quartos. Respira fundo,
introduz o gancho na fechadura da porta e entra facilmente − fruto da
habilidade e do treino.
Marga inicia, aqui e agora, um part-time que lhe garante um
futuro desafogado e livre.
Marga inicia, aqui e agora, uma actividade arriscada, digna de um filme
de acção.
Marga, ladra profissional, é a partir deste momento especialista
internacional em furtos de jóias em hotéis
É a sua primeira vez.
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